São Paulo

FAPESP: novo modelo de Súmula Curricular busca favorecer a equidade de gênero

A FAPESP atualizou no fim de julho o modelo da Súmula Curricular que deve acompanhar todas as solicitações de bolsas e auxílios submetidas à Fundação. A principal novidade é a orientação para que o pesquisador responsável pelo projeto relate, no campo “outras informações biográficas”, eventuais interrupções na carreira decorrentes de licenças médicas – incluindo licença-maternidade ou paternidade – ou da necessidade de cuidar de terceiros, como familiares enfermos, com deficiência ou idosos.

Segundo o diretor científico da FAPESP, Luiz Eugênio Mello, as mulheres possivelmente serão as principais beneficiárias da mudança.

“O cuidado da prole está culturalmente mais associado com as mulheres do que com os homens. Elas também se dedicam com muito mais frequência a parentes que, por algum motivo, demandam cuidado especial. No momento em que a FAPESP recomenda a quem está preenchendo o formulário que atente para esses fatores, evidentemente também está orientando os avaliadores para que esses aspectos sejam levados em consideração”, afirma.

Como explica Mello, por retratar toda a trajetória profissional do pesquisador – incluindo suas publicações, premiações, parcerias e experiências, a Súmula Curricular configura-se no principal documento usado pela assessoria científica ad hoc, pelas Coordenações de Área e as Coordenações Adjuntas da Diretoria Científica durante a avaliação de um projeto.

“As mudanças que estão sendo implementadas se inserem num conjunto de políticas e práticas institucionais – genericamente chamadas de ações afirmativas – que buscam promover a inclusão e a participação equilibrada de diferentes grupos da sociedade. O objetivo é colocar a FAPESP em sintonia com o mundo de hoje. Há evidências de que, quanto mais diversa é uma comunidade, mais rica é a contribuição que ela consegue fazer. E o equilíbrio de gênero é um dos principais aspectos a serem considerados em qualquer sociedade”, diz Mello.

A promoção da equidade de gênero na pesquisa tem sido uma preocupação da FAPESP nos últimos anos, bem como das demais agências de fomento que integram o Global Research Council (GRC) – organização internacional que tem a missão de promover o compartilhamento de dados e melhores práticas para uma cooperação de pesquisa de alta qualidade. Um Grupo de Trabalho sobre Gênero foi criado no âmbito do GRC em 2017 para coletar dados sobre a participação de gênero na pesquisa em diferentes países, de modo a embasar políticas de inclusão. Um relatório foi divulgado pelo grupo em junho deste ano com informações sobre coleta, análise e disseminação de dados desagregados sobre gênero e outras dimensões da diversidade por 65 das 128 organizações que integram o GRC. A FAPESP coordenou a elaboração do documento ao lado da Fundação Nacional de Pesquisa da África do Sul (leia mais em: agencia.fapesp.br/36029/).

“Os países do mundo estão em diferentes estágios de maturidade e não é possível saber quais avanços são necessários em cada local se não houver dados sistematizados a respeito. Um dos trabalhos mais importantes do GRC é conscientizar as agências de fomento sobre a importância de se gerar informação num nível de detalhamento fino o suficiente para subsidiar a elaboração de políticas e práticas organizacionais”, conta Mello.

Com base nos dados levantados pela FAPESP, é possível afirmar que o Estado de São Paulo no que diz respeito à equidade de gênero na pesquisa não fica atrás de países da Europa ou da América do Norte. Contudo, o diretor científico da Fundação considera que há sempre “espaço para melhorar”.

“A taxa de aprovação [dos projetos submetidos] é equilibrada entre homens e mulheres na FAPESP. O número de solicitações também é similar quando olhamos para bolsas, qualquer que seja o nível. Contudo, no caso dos auxílios à pesquisa, percebemos que há um número inferior de submissões femininas na modalidade Temático, voltada a quem está em uma fase mais avançada da carreira. Esse dado revela outro importante: menos mulheres estão chegando ao topo da carreira científica”, conta Mello.

Na avaliação de Ana Maria Fonseca de Almeida, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), integrante do Grupo de Trabalho sobre Gênero do GRC e uma das coordenadoras do relatório sobre o tema divulgado pela entidade, são vários os fatores por trás dessa realidade.

“Em primeiro lugar, temos de levar em conta que a escolarização feminina é um fenômeno relativamente recente. Há dez ou 20 anos não havia a mesma quantidade de mulheres na força de trabalho de pesquisa. E demora anos para uma pessoa chegar a posições altas na administração universitária ou na chefia de laboratórios. Essa geração que agora ocupa esses cargos não era composta pela mesma proporção de mulheres e homens que vemos hoje”, diz Almeida.

A professora da Unicamp também aponta a existência de “obstáculos institucionais” no caminho das pesquisadoras.

“Quando a gente não considera o contexto em que se deu o percurso profissional e acadêmico, não leva em conta as interrupções motivadas, por exemplo, pelo trabalho de cuidar, estamos dando margem para que um obstáculo institucional atrapalhe a carreira das mulheres. Não basta colocar no currículo a licença-maternidade. É preciso que toda a comunidade reconheça a importância desse período e leve isso em conta na análise do currículo. Até recentemente, muita gente achava que se a pessoa parou para ter bebê estava menos comprometida com a carreira. É preciso mudar esse entendimento, pois nós como espécie dependemos da reprodução. Esse não é um trabalho que a mulher faz só para ela ou para sua família. A maternidade é um trabalho social, do qual todos nos beneficiamos.”

Leia abaixo outros trechos da entrevista concedida por Almeida à Agência FAPESP.

De que modo a mudança no modelo de Súmula Curricular da FAPESP se relaciona com a busca por equidade de gênero na pesquisa científica?
Ana Maria Fonseca de Almeida – Com essa mudança, a FAPESP tenta não adicionar obstáculos para a participação, nos esforços de pesquisa, de pessoas que integram grupos historicamente excluídos. A iniciativa tem a ver com uma visão de que a busca pela qualidade e a excelência na pesquisa deve obedecer a um princípio de inclusão, de diversidade. Há cada vez mais estudos mostrando que a excelência é alcançada por meio da participação de pessoas com visões de mundo diversificadas, com diferentes formas de pensar e de conceber o que é um objeto ou um problema. A ideia é que uma força de trabalho com formação e experiências diversas, composta por pessoas que ocupam diferentes posições no espaço social, vai produzir uma pesquisa melhor. Nosso conhecimento aumenta numa velocidade maior e nossos objetos de pesquisa são mais amplamente discutidos. A mudança na súmula é um dos mecanismos pelos quais a FAPESP pode operar para diminuir obstáculos à participação feminina, pois [a sua adoção] está sendo acompanhada de uma discussão interna sobre a maneira como os currículos vão ser analisados. O modelo antigo já permitia ao pesquisador ou pesquisadora incluir os elementos biográficos que impactaram a sua produção científica e muitos já inseriam esse tipo de informação. Mas sempre ficavam na dúvida sobre como seriam julgados. O novo modelo de Súmula Curricular explicita o convite para que os cientistas evidenciem como determinados acontecimentos afetaram sua produção e seu percurso acadêmico. É um compromisso que a FAPESP está assumindo de valorizar essas circunstâncias, de levar em conta e considerar que isso é absolutamente natural, pertinente à atividade de pesquisa. É um pequeno aceno, um pequeno elemento concreto de uma reflexão maior que tem sido motivada pelo interesse da Fundação de ampliar a participação de grupos historicamente excluídos.

É, portanto, uma nova orientação não apenas para quem preenche o formulário, mas também para quem avalia os projetos?
Almeida – Exatamente. É uma demonstração de que para a FAPESP o contexto de produção acadêmica importa e tem de ser levado em consideração. As pessoas se sentem à vontade para contar, por exemplo, que a produção caiu porque mudaram de instituição e estavam se adaptando. Mas tendem a esconder momentos em que sua energia estava consumida pela tarefa de cuidar de outras pessoas. E como isso afeta particularmente um grupo de pesquisadores, é bom que seja explicitado, pois assim esse currículo será analisado à luz dessas circunstâncias. A FAPESP tem repensado suas práticas e pretende ser um agente indutor de mudanças também nas universidades, assim como ocorreu com as políticas de boas práticas em pesquisa. Trabalhar sob essa perspectiva leva as instituições a perceberem o ganho que podem ter ao identificar os obstáculos que podem estar atrapalhando a plena participação das mulheres.

Na sua avaliação, quais são hoje os principais obstáculos no caminho das pesquisadoras?
Almeida – Os sistemas de ensino historicamente garantiram o sucesso escolar para alguns grupos mais do que para outros. Atuaram como máquinas de produzir desigualdades. Mas, ao longo do século 20, observamos uma transformação na forma como as mulheres se apropriavam do ambiente escolar. À medida que lhes foi sendo dada a oportunidade de permanecer na escola por mais tempo, as mulheres foram apresentando um desempenho muito alto e ocupando espaços cada vez maiores, até recentemente reservados aos homens. Quando chegamos à década de 1990 e aos anos 2000, percebemos um contingente grande dessa população interessado em construir carreira na pesquisa. Mas essas mulheres vão enfrentar muitos obstáculos, porque as instituições estavam preparadas para os homens. Como impera um determinado tipo de divisão do trabalho, estudos têm mostrado, por exemplo, que o horário em que se marcam reuniões influencia a possibilidade de as mulheres estarem presentes ou não. Assim como a maneira como se distribui o trabalho nos laboratórios e como é alocado o tempo de uso dos aparelhos. Se as mulheres precisam atender à necessidade de filhos pequenos ou de parentes enfermos, elas vão ter uma menor flexibilidade para o uso do tempo e isso pode favorecer as pessoas que estão mais liberadas – dentre as quais se encontra um grande contingente de homens. Desse modo, as instituições interessadas em fomentar uma pesquisa de excelência devem construir dispositivos e se organizar de maneira a permitir a participação na pesquisa dessas mulheres, que são muito bem preparadas e que têm ambição, interesse e vontade de participar desse empreendimento.

Por que ainda há menos mulheres ocupando cargos de liderança no meio acadêmico e também em algumas áreas do conhecimento, como as ciências exatas?
Almeida – A participação feminina na ciência tem crescido em todas as áreas – em algumas mais rapidamente. Em meados dos anos 2000, o número de mulheres ultrapassou o de homens entre os concluintes do doutorado. Isso reflete algumas tendências da pós-graduação brasileira, entre elas o peso das áreas mais femininas no conjunto dos programas de pós-graduação, e também indica essa maior participação das mulheres que foi sendo gestada ao longo do século 20. Existem áreas mais permeáveis aos homens e outras, às mulheres. Nas tradicionalmente femininas, elas vão mais cedo tentar ocupar posições mais altas. Mas algumas áreas ainda se encontram muito fechadas – não só as exatas, como a gente pensa. Filosofia é um exemplo. A gente parte do princípio de que todas essas áreas se beneficiam de uma força de trabalho mais diversa e isso inclui não apenas a questão de gênero, como também outros princípios de diferenciação. Como a atividade de pesquisa é também uma relação social, é organizada em torno de crenças, visões de mundo e de dispositivos institucionais que já estão presentes na sociedade há muito tempo. Nossa sociedade ainda organiza a tarefa do cuidado de maneira a exigir atenção diferente das mulheres e dos homens. Ninguém as obriga a cuidar dos filhos. Mas elas são socializadas de modo a acreditar que sua presença é imprescindível e que estariam promovendo um desfecho ruim na criação daquela criança se não estivessem presentes em uma determinada intensidade. Então há um conjunto de explicações. Em primeiro lugar, a gente tem de levar em conta que a escolarização feminina é um fenômeno relativamente recente. Há dez ou 20 anos, não havia a mesma proporção de mulheres na força de trabalho de pesquisa. E leva tempo para uma pessoa chegar a ocupar posições altas na administração universitária, na chefia de laboratório. A geração que agora ocupa esses cargos não era composta pela mesma proporção de mulheres e homens. Além disso, quando a gente não considera o contexto em que se deu o percurso profissional e acadêmico, não leva em conta as interrupções para o ato de cuidar, estamos dando margem para que um obstáculo institucional atrapalhe a carreira das mulheres. Não basta colocar no currículo a licença-maternidade. É preciso que toda a comunidade valorize aquele período de licença-maternidade. Não pode simplesmente comparar com outro currículo sem levar isso em conta. Até recentemente, muita gente achava que se a pessoa parou para ter bebê estava menos comprometida com a carreira. É preciso mudar esse entendimento, pois nós como espécie dependemos da reprodução. Não é um trabalho que a mulher faz só para ela, privadamente para sua família. Esse é um trabalho social, do qual todos nos beneficiamos. A gente vê cada vez mais as autoridades universitárias investindo na igualdade de gênero e tentando garantir que a universidade seja um espaço para as mulheres se desenvolverem, mas não estamos certos de que 100% da comunidade já tenha aderido a essa ideia.

Na sua opinião é apenas uma questão de tempo para que a presença feminina em cargos de liderança se equipare à masculina?
Almeida – Se a gente deixar, eventualmente, em algum momento, vai haver uma paridade, porque esse avanço das mulheres na escola e nos diferentes espaços de trabalho é real e é um movimento sem volta. Só que, em paralelo, a gente tem hoje evidências de que a missão de uma agência de fomento vai ser mais bem cumprida se garantirmos uma força de trabalho diversa. É do interesse das instituições que elas não fiquem esperando o desfecho eventual que vai acontecer por conta da mudança demográfica. É de interesse dessas instituições que elas estimulem a criação de ambientes mais propícios à participação feminina, pois há um ganho real com essas providências. As duas coisas vão juntas. Há dois fenômenos importantes no século 20. O primeiro é o avanço da escolarização feminina e, o segundo, da percepção sobre o que é direito. Direito à participação, a estar presente, a buscar a sua própria realização e felicidade. A partir principalmente da década de 1940, isso vai se entranhando no arcabouço legal das nações e nas nossas mentalidades. Hoje temos uma população disponível, preparada, ambiciosa e muito interessada em pesquisa e temos um entendimento de que é seu direito participar dessa atividade. E a nossa sociedade vai construindo leis para apoiar essa ambição.

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