Cultura

Vencedora de Nobel, autora faz obra que é aula de como construir voz incomum

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As peculiaridades dos personagens da polonesa Olga Tokarczuk — que recebeu no mês passado o Nobel de Literatura correspondente a 2018 –nunca são menos do que deliciosas.
Janina Dusheiko, narradora de “Sobre os Ossos dos Mortos”, faz mapas astrais sentada à mesa da cozinha e acha que a ingestão de sal puro favorece as transmissões entre os neurônios.
Embora não seja mais jovem e sofra com achaques terríveis, a senhora Dusheiko vive isolada em um povoado minúsculo. Além de dar aulas de inglês ocasionais, ela toma conta das casas dos moradores que não passam o inverno ali.
Durante as caminhadas para supervisionar as construções, ela observa e monitora o entorno. Conhece o ciclo das estações, a vegetação, os animais.
O livro tem início com a morte de um vizinho a quem a narradora chama de Pé Grande — inventar novos nomes para toda sorte de seres é mais uma de suas peculiaridades. “Acredito que cada um de nós vê o outro a seu modo, portanto tem o direito de chamá-lo da maneira que acha mais adequada e conveniente.”
O apelido estranho tem, portanto, razão de ser. Pé Grande, que costumava caçar e pôr fogo na mata, “lembrava um predador que vivia apenas para semear a morte e provocar sofrimento”.
A narradora conclui que os animais silvestres o assassinaram para se vingar dos seres humanos. Sua convicção parece aumentar à medida que surgem outras vítimas.
A postura da senhora Dusheiko parte de uma indignação justificada, mas nem sempre é razoável ou resulta em ação eficaz.
Quando busca as autoridades para denunciar a morte de um javali, o que ela pretende é criticar de forma mais ampla a maneira como tratamos os animais. Tokarczuk permite que o leitor a veja como os policiais a veem –uma senhorinha excêntrica que discursa para um poodle em uma delegacia.
Talvez seja por isso que ela diz que lutava contra os postos de caça construídos nos arredores “como Dom Quixote lutava contra os moinhos de vento”. É preciso levar em conta, porém, que Janina Dusheiko acha que toda sabedoria deriva da ira. “Vejo apenas catástrofes”, diz.
Tokarczuk providencia um mergulho completo na subjetividade da personagem. Mais do que uma narrativa tradicional em primeira pessoa, a autora constrói um mundo interno que depende não só de uma linguagem própria, mas de uma espécie de (por mais absurdo que possa parecer) mitologia privada. Atribuir emoções e intenções a objetos inanimados é algo rotineiro para a senhora Dusheiko.
“Sobre os Ossos dos Mortos” é, no fim das contas, uma mistura de romance policial e filosófico. Também é uma aula de como narrar e de como construir uma voz incomum.

SOBRE OS OSSOS DOS MORTOS
Avaliação: ótimo
Preço: R$ 59,90 (256 págs.)
Autor: Olga Tokarczuk
Editora: Todavia

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