Cotidiano

Grampos sugerem que brigadistas não usavam doação para sustento próprio

ALTER DO CHÃO, PA (FOLHAPRESS) – Um diálogo grampeado entre dois dos brigadistas voluntários acusados pela Polícia Civil do Pará de causar incêndios para arrecadar dinheiro sugere que eles não faziam uso das doações para despesas pessoais.
A interceptação telefônica integra os autos cautelares do inquérito, que não traz evidência de crime, como revelado na última semana.
Em uma ligação no dia 8 de outubro, João Victor Pereira Romano consulta Daniel Gutierrez Govino sobre a possibilidade de se ausentar da Brigada de Alter do Chão para realizar um trabalho de filmagem em terras indígenas em Rondônia e no Acre utilizando drones, com remuneração de R$ 4 mil por 15 ou 20 dias de trabalho.
“Pra mim é boa a grana, só que…é, se você segurar aqui tá bom”, diz João. “Você tinha falado que estava precisando trabalhar”, comenta Daniel, que o autoriza a fazer o trabalho, dizendo que a experiência será importante para a Brigada e que essa também precisa continuar funcionando sem eles.
“É, se eu fizer 4 ‘pau’ eu fico mais de boa ainda, porque 2 ‘pau’ mais 4 ‘pau’, tá tranquilo”, conclui João. A conta é bem mais modesta do que a sugerida pelo inquérito da Polícia Civil, que os acusa de obtenção de vantagem financeira com uma arrecadação superior a R$ 300 mil.
Em um diálogo anterior, Daniel discute com Viellas, com quem negocia a mesma filmagem e considera dividir o tempo de trabalho com João. Em um ponto da conversa, Daniel diz: “a Brigada tá tomando um tempo absurdo da minha vida, tá ligado? De graça, né?”
A polícia acompanhou os desdobramentos da negociação do trabalho levantando a suspeita de que as filmagens envolveriam incêndios orquestrados, mas, após ter verificado por satélite que não ocorreram incêndios nos dois estados naquelas datas, o inquérito não chegou a uma conclusão sobre essa suspeita.
As interceptações também registram a parceria da Brigada de Alter com o Corpo de Bombeiros, através de um diálogo de João Romano com Herbert, identificado como técnico da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros do Pará.
Na conversa, João conta ter boa relação com o Coronel Tito, que lhe cobrava informações constantes sobre os incêndios ocorridos em setembro. Na mesma ligação, João propõe o uso das doações para criação de uma defesa civil em Alter do Chão –o que Herbert considera difícil. O técnico ainda lhe orienta sobre como poderiam fazer um curso para formar brigadistas.
O curso havia sido objetivo de uma campanha de financiamento coletivo para arrecadar R$ 6,2 mil pela internet em agosto, mas as doações chegaram a R$23,4 mil, segundo documento compartilhado pelos brigadistas em um grupo de Whatsapp e anexado ao inquérito. O excedente – R$ 17,2 mil –seria usado em outras formações listadas no mesmo documento.
Conversas dos brigadistas atribuem o sucesso das doações à repercussão midiática do Dia do Fogo, como ficou conhecido o incêndio orquestrado na cidade paraense de Novo Progresso.
Em uma conversa com sua mãe, Marcelo Aron Cwerner, outro dos brigadistas acusados, comemora a quantidade de doações recebidas, lembrando que há pouco tempo não tinham verba para realizar um curso de formação de brigadistas.
A mãe responde que “esses institutos não dão muita grana”. Marcelo contesta. “Não dá grana porque é sem fins lucrativos, mas pode ter pagamento de salário. O Gustavo recebe R$ 5 mil de salário no Saúde e Alegria”, diz.
Segundo juristas ouvidos pela reportagem, os autos cautelares, que reúnem a comunicação da Polícia Civil com a Justiça, contêm pelo menos dois procedimentos ilegais. Um deles é a falta de relação entre a fundamentação do caso e a decisão do juiz em alguns casos, como na autorização para apreensão de equipamentos na sede do Projeto Saúde e Alegria. O inquérito não faz acusação específica contra a ONG.
Outro procedimento ilegal teria sido a falta de comunicação do juiz ao Ministério Público Estadual sobre a realização das prisões preventivas, cuja decisão deve ser submetida a consulta do MP, o que não aparece nos autos.
Conforme questionamento do Ministério Público Federal junto à Justiça, a investigação deve sair das mãos da Polícia Civil do Pará e ser transferida para a esfera federal, já que a área incendiada – a APA Alter do Chão – pertence à União.

*A jornalista viajou a convite da Fundação Konrad Adenauer (KAS).

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