Cultura

Querem que censura volte, mas hoje em dia é mais difícil, diz Gilberto Gil

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Gilberto Gil diz ter vergonha de ver seus filmes antigos. Não por um constrangimento em relação a sua obra ou ao seu estilo de cantar (e se vestir) em outros tempos, mas por um natural recato de se ver registrado em produtos audiovisuais.
“Eu tenho com relação a essas cenas todas, de programas de TV, reportagens, filmes, é uma timidez. E o gozado é que é mesmo por causa do movimento [das cenas], porque com fotos eu não sinto isso”, diz o músico à reportagem, em entrevista em seu estúdio, no bairro da Gávea, zona Sul do Rio.
Por isso, talvez seja um pouco desconfortável para o baiano assistir ao documentário “Gilberto Gil – Antologia, Vol. 1”, porque é justamente de imagens dele (tanto antigas quanto atuais) que o filme é massivamente composto. O longa teve sua estreia nacional na tarde desta terça (10), no Festival do Rio. Outra sessão acontece nesta quarta (às 15h15, no estação NET Rio Botafogo).
O filme parte de um conceito curioso: Gilberto Gil assiste a vídeos antigos de sua carreira, em que canta alguns de seus maiores sucessos. Em seguida, reage a cada um, tecendo algum comentário sobre o surgimento de cada canção –ou mesmo sobre alguma especificidade de cada vídeo musical.
Assim, o público ouve Gil contar histórias deliciosas. Por exemplo, ela detalha como “Expresso 2222” surgiu após uma viagem de LSD. Conta que “Se Eu Quiser Falar com Deus” foi composta para Roberto Carlos, que não quis gravar. “Acho que tinha restrições com [a letra, que menciona] ‘o pão que o Diabo amassou'”, ri Gil, em trecho do filme. Há ainda o relato de episódios divertidos, como um breve encontro com Salvador Dalí, e depoimentos reiterando seu fascínio por João Gilberto, Luís Gonzaga e Jorge Ben Jor.
A direção é de Lula Buarque de Hollanda, que já comandou vários projetos audiovisuais envolvendo o baiano, como o documentário para a TV “Filhos de Gandhy” (1999) e o DVD “Kaya N’Gan Daya” (2002). A nova colaboração entra em cartaz no canal pago Curta! em 23 de dezembro.
“Resolvi não cortar as músicas mais conhecidas para servir de documento para as novas gerações”, explica Hollanda, que espera um dia poder fazer um “volume 2” do documentário, seguindo a mesma linha.
“Quando destravar esse processo na Ancine, esse projeto deve acontecer”, diz, referindo-se à atual crise na agência reguladora do cinema brasileiro. As imagens escolhidas pelo diretor vão de 1966 a 1983 –coincidentemente (ou talvez nem tanto), um período em que o Brasil ainda vivia a Ditadura Militar.
“Naquela época não tinha política cultural do governo. Ou até podia haver, mas não nos afetava”, diz Gil, que foi ministro da Cultura entre 2003 e 2008, na era Lula. “Essa atenção da sociedade da instituição cultural, isso é muito recente. Não existia propriamente naquela época. Ali, a única coisa que a gente tinha de ligação direta com o governo era a censura [risos].”
Mas o músico não vê a censura mais como algo restrito ao passado brasileiro. “É tudo o que eles [o governo Bolsonaro] querem: que volte. Mas hoje em dia é mais difícil”, diz Gil.
“Hoje em dia, as pessoas têm noção de que a música é importante, como o teatro, o cinema, a dança, a pintura… As pessoas sabem o significado de uma Bienal, sabem o significado de uma instalação moderna… Quando a ‘Tropicália’ [instalação de 1967, que batizou o Tropicalismo] do Hélio Oiticica apareceu, a gente nem sabia o que aquilo significava. Hoje em dia, qualquer intervenção nova vai para a primeira página dos cadernos de cultura, o noticiário, as mesas de discussão.”
“Os jovens se mobilizam, e não só os universitários, mas [também] os secundaristas. Os meninos das escolas primárias de São Paulo estão indo agora para ver a exposição da Tarsila [do Amaral, no Masp, que bateu recorde de público]”, exemplifica o cantor.
Gil demonstra que, de certo modo, já esperava que nomes ultraconservadores fossem indicados pelo governo Bolsonaro para cargos importantes na Secretaria Especial da Cultura. “Essa vontade de controle absoluto e de imposição de modos de ser, de compreender… A necessidade de uniformização da compreensão, do ‘isso aqui é certo, isso é errado…’. O aparelhamento que estão tentando fazer, na verdade, é uma repetição [do que ocorre com] todas as gerações que chegam ao poder, com suas noções e seu espírito. Chegam com esse desejo da imposição da sua estética, de seu campo de valores.”
Indagado especificamente sobre a recente escolha de um militante de direita para a presidência da Fundação Cultural Palmares, Sergio Nascimento Camargo, que disse não existir “racismo real” no Brasil, Gil reage sem o estarrecimento que muitos esperariam. “Uma semana depois ele está fora! O próprio campo dele, que propõe esse modo de intervenção, tem que recuar. O campo geral, que é o da sociedade, reage imediatamente”, diz Gil.
“Todo esse medo, esse conservadorismo no comportamento, essa coisa da agenda dos costumes, isso tudo é processado permanentemente, diariamente, por todo mundo. Então não adianta…”
A organização dos vários grupos sociais em defesa da diversidade e das minorias, segundo Gil, é capaz de resistir a imposições religiosas. “Antigamente, estava todo mundo submetido aos desígnios da religião, das classes dominantes –que por sua vez estavam todas elas articuladas com esse campo da fé, do entendimento da vida como um reflexo da compreensão de Deus. Uma coisa que a religião reivindicava para si, que é o perdão, hoje ela é praticada permanentemente– no campo da tolerância, da compreensão sobre a diversidade. Então isso saiu da mão da imposição religiosa”, explica o músico.
“Por exemplo, quando você tem uma pauta querendo retomar a coisa religiosa como modo de imposição de maneiras de ser, de viver, de interpretar, o sucesso é cada vez menor. Claro que eles arregimentam, porque é residual esse temor de Deus, como a figura vigilante lá de cima… Mas também é cada vez maior também o amor de Deus, que é um Deus aberto, da fraternidade, da mudança.”
Mas o que pensa Gilberto Gil sobre o futuro do Brasil, após Bolsonaro?
“O Brasil, como cada vez mais qualquer país ou grupo nacional, depende da totalidade internacional. Se o mundo for para o lado mais representativo desse governo que está aí, possivelmente teremos que nos submeter à hecatombe. Mas se for para o outro campo, do desenvolvimento, da ciência […], aí não tem jeito: o Brasil vai junto”, diz o cantor.
“Se você vê toda a investigação sobre os caminhos futuros da humanidade, o que vem aí com a nanotecnologia, com a biotecnologia… Antigamente quem fazia milagre eram os santos e deuses. Hoje, é a Ciência.”

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