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Para além da realidade

Flávia Lins e Silva brincava de detetive com os primos. Com os irmãos, embarcava numa rede mágica rumo ao desconhecido. Toda sexta-feira, ganhava um livro novo do pai e adorava as histórias inventadas pela mãe. Na escola, onde tinha que escrever diários, dava uma incrementada no texto quando o fim de semana não tinha sido lá grande coisa. Adolescente, fez intercâmbio numa fazenda no interior dos Estados Unidos. Aos 18, deixou o Rio, onde nasceu em 1971, com um mochilão nas costas para viajar pela Europa, e pagou a viagem trabalhando de babá na Itália, na Alemanha, etc. Estudou jornalismo para viver da escrita, mas só falar da realidade, diz, não preenchia a sua alma.

Enquanto trabalhava na Globo, como jornalista mesmo ou roteirista (ela colaborou em novelas como Laços de Família, em seriados como Caça Talentos e Mulher, e em muitos outros programas da emissora ao longo de 20 anos), ela escrevia livros.

Pilar, uma curiosa garota que busca respostas para suas dúvidas e problemas na mitologia, e que conta com a ajuda e companhia do amigo Breno e do gato Samba e pegando carona em sua rede para viajar no tempo e no espaço, foi sua primeira personagem. E é por causa dessa menininha que estampou seu livro de estreia, Peripécias de Pilar na Grécia, em 2001, e ressurgiu em 2010 na série Diário de Pilar, que ganhou ilustrações de Joana Penna e se tornou um best-seller infantojuvenil, que Flávia, moradora de Lisboa desde 2016, está no Brasil.

Pilar, que depois da Grécia visitou o Egito, a África, a China, Machu Picchu e a Amazônia, é a nova estrela do canal Nat Geo Kids. Com direção de Bruno Bask e Humberto Avelar, que trabalharam juntos em Mundo Ripilica, e voltada para a faixa etária dos 5 aos 10, a série de animação Diário de Pilar estreia nesta segunda, 17, às 17h30. Aqui, na Argentina, Colômbia, México e Chile. Um novo episódio – são 26, independentes, de 11 minutos cada um – vai ao ar de segunda a sexta, com as tradicionais reprises. Essa primeira temporada se passa Grécia, na China e nos Andes.

A música de abertura é de Carlinhos Brown e seu filho Chico. Outras composições ficaram a cargo de Arnaldo Antunes e o filho Tomé, Céu, e da própria Flávia em parceria com André Mehmari, diretor musical do desenho e responsável também pela trilha incidental – essa música é interpretada por Lenine. Carol Valença faz a voz de Pilar, e há ainda a participação, ou melhor, a voz, de Thiago Lacerda, Mel Lisboa, Dani Suzuki e Daphne Bozaski, entre outros.

É uma adaptação dos livros, mas que amplia seu universo, explicam os diretores. Há mais aventura e novos personagens e mitos. A autora está confiante. Ela já tinha recusado propostas de adaptação em live action por achar que não ficaria bom. “Depois de Harry Potter, o mundo infantil mudou. Ou você faz incrível ou não faz”, diz a Flávia, criadora também de D. P. A. – Detetives do Prédio Azul, série de sucesso no Gloob (são 8 anos, 16 temporadas e 400 casos), no cinema, teatro e depois nas livrarias – posteriores à série, os livros são publicados pela Pequena Zahar, editora também de Pilar.

“Mas de onde ela tirou todas essas coisas? Ela se inspirou em alguma coisa da vida dela?”, questiona Helena Ayres, de 10 anos, que ganhou Diário de Pilar na Amazônia de uma amiguinha em 2017 e adorou – e naquele ano mesmo pediu outros dois para o Papai Noel. Hoje ela já leu todos e está curiosa para saber como eles vão ficar na tela.

Em uma conversa com a reportagem, na Livraria da Vila, a autora conta que começou pelo básico, já adulta, e por causa de outros roteiros: lendo Joseph Campbell, autor de, entre outros, O Poder dos Mito. Mas foi além, quis conhecer todos os mitos da humanidade e o encantamento continuou a ponto de querer escrever essas histórias para as crianças.

“Tem cada coisa legal que ela conta desses lugares… A gente se distrai lendo e aprende também. Eu, por exemplo, aprendi ainda mais sobre a escravidão quando li Diário de Pilar na África. Sem contar que gostei muito do estilo do livro. É um diário, com linha e tudo, e você se vê dentro da aventura”, explica Helena. Se ela se sente parecida com Pilar? “Talvez, no sentido de que ela sempre quer descobrir mais a fundo as coisas”, responde a garota.

“Os leitores jovens estão sempre abertos ao novo, ao que não conhecem. As crianças são curiosas e inventivas, gostam de imaginar, pensar no que ainda não existe, imaginar o mundo para além da realidade”, comenta a autora. Para ela, a série Diários de Pilar ajuda a despertar para culturas diferentes e também a estar aberto ao outro. “Brinco que a literatura é uma espécie de homeopatia que ajuda na prevenção aos preconceitos. Ela abre a cabeça, e com a cabeça aberta olhamos o outro, o diferente, passamos a não querer só mais do mesmo, achamos legal o diferente, queremos ser nós mesmos. E isso vai ajudando a construir nossa própria essência, uma construção que leva toda uma vida.”

No novo livro que Flávia está escrevendo, com lançamento previsto para o segundo semestre, Pilar, sempre com 10 anos, está na Índia e está justamente fazendo esse caminho de descoberta interior, algo caro à autora, mãe de Paloma, de dois anos e meio, e que olha com preocupação para a nova geração de crianças conectadas, que buscam o like do outro. “Isso é muito perigoso: elas estão o tempo todo se comparando, querendo a aprovação do outro. Hoje, mais do que nunca, é importante a gente se ouvir, mergulhar dentro da gente mesmo, da nossa essência, conhecer o nosso desejo. Ser quem o outro quer que você seja e esperar pelo aplauso dele é perigoso para quem está em formação, se construindo e se descobrindo. É fundamental, primeiro, a gente se conectar com a nossa essência. É sobre isso que quero falar no livro.”

Fã de meditação, estudiosa da literatura para a infância e com mil ideias na cabeça (incluindo uma série de TV sobre dinossauros), ela sonha com um mundo melhor e quer que as crianças também sonhem (em plantar árvores em vez de ter coisas, por exemplo) e se permitam imaginar coisas como “e se pudessem ir colhendo frutas no caminho para a escola?”. Ou: “E se houvesse leituródromos, meditódromos e hortas coletivas na cidade?”

A leitura de ficção possibilita esse “e se”. Um exercício importante que pode mudar o rumo do mundo. “Antes de as coisas existirem elas são imaginadas. Antes de o submarino existir, Julio Verne teve que imaginar. Precisamos entender que abrir a imaginação não é só para ser escritor, mas para ser um criador, um engenheiro. Para você bolar uma coisa que não existe você tem que ter imaginação e a ficção, desde pequenininho, ajuda a enriquecer o seu imaginário, a perceber que você pode imaginar o que quiser”, completa a autora.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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