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Entenda como funciona o ‘desafio da rasteira’

Saiba o que é o 'desafio da rasteira' que atinge as crianças

Entenda como funciona o ‘desafio da rasteira’. “Pessoal, vou utilizar o grupo agora para uma informação de utilidade pública. Fiquem atentos com as escolas onde seus filhos estudam pois está circulando uma brincadeira aberrante onde já houve crianças com fratura craniana e leva a graves sequelas ou a morte”, diz mensagem que se tornou viral, nos últimos dias, em grupos de WhatsApp de famílias e escolas. Baixe o Aplicativo Gratuito do Portal Mix Vale

Junto com a mensagem vem um (ou mais de um) vídeo mostrando três adolescentes, um ao lado do outro, fazendo o que é apontado como o mais recente “desafio” circulando entre jovens: quando o adolescente do meio dá um salto, os dois das pontas lhe passam uma rasteira, fazendo com que caiam de costas ou de cabeça no chão.

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No entanto, como de costume em debates sobre “febres” da internet — como já ocorreu com a “momo” e com o chamado “desafio da baleia azul” —, os compartilhamentos sobre o “desafio da rasteira” misturam fatos (e riscos) reais com uma dose de desinformação e pânico.

A seguir, a BBC News Brasil destrincha o que há de concreto no caso, ouve especialistas sobre como conversar a respeito com os filhos e explica por que o pânico dos pais pode, sem querer, agravar o problema, em vez de mitigá-lo.

O caso do colégio Santo Tomás Aquino

O vídeo que tem acompanhado a mensagem viral no WhatsApp mostra três estudantes falantes de língua espanhola usando uniformes de um colégio chamado Santo Tomás Aquino.

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Pelo Twitter, o colégio (localizado no município de Chacao, na Venezuela) postou comunicado da prefeitura local no dia 7 de fevereiro, advertindo que, diante da “situação agressiva de muito risco” a que os alunos estão expostos pela brincadeira, foi acionado o conselho local de proteção infantil.

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Segundo a ONG cearense DimiCuida, que monitora “jogos” perigosos que se disseminam online, o vídeo dos alunos do colégio Santo Tomás foi bastante compartilhado em países da América Central no final da semana e começou a circular no Brasil nos últimos dois dias.

Ao contrário do que tem acontecido, especialista não recomenda que se compartilhe vídeo de crianças fazendo desafios online — Foto: Reprodução

Ao contrário do que tem acontecido, especialista não recomenda que se compartilhe vídeo de crianças fazendo desafios online — Foto: Reprodução

A tragédia de Mossoró

Também têm sido frequentes, nas redes sociais, compartilhamentos de alertas sobre o “desafio da rasteira” com prints de uma notícia sobre a morte de uma adolescente em Mossoró (RN).

Embora a notícia esteja sendo compartilhada como se fosse atual, trata-se de um caso trágico ocorrido em novembro de 2019.

O diretor da escola municipal Antonio Fagundes, José Altemar da Silva, explica à BBC News Brasil que a adolescente Emanuela, de 16 anos, estudante do 9º ano do ensino fundamental, participava de outro tipo de jogo ou desafio, que consistia em ser “girada” como uma “roleta humana”, nos braços entrelaçados de dois amigos, e tentar cair de pé.

A jovem, porém, caiu de cabeça no chão. “Socorri, levei ela para o hospital com a mãe, e a tomografia mostrou que ela teve um traumatismo craniano com sangramento”, explica Silva. “Ao sair da tomografia, ela desmaiou e teve uma parada cardíaca. Foi reanimada e passou por uma cirurgia. Ainda teve mais quatro dias viva. Mas sofreu outra hemorragia.”

Emanuela, que Silva descreve como “uma menina muito doce, muito educada”, morreu em 11 de novembro do ano passado, gerando uma grande comoção na escola e um sinal de alerta para os educadores.

“Eles (adolescentes) não tinham noção do perigo. Depois disso, eu soube que essa brincadeira de girar estavam ocorrendo em outras escolas da cidade, sem a gente ter conhecimento. Foi um choque muito grande”, prossegue o diretor.

A escola ficou três dias fechada, em luto, e os alunos passaram a ter acompanhamento psicológico, sobretudo os que estavam envolvidos no episódio, conta Silva.

“Quando eles voltaram para as aulas, eles choravam muito. (…) Foi uma surpresa muito grande, uma grande infelicidade, em uma escola onde nunca havia acontecido nada assim, e onde todas as crianças são do mesmo bairro.”

A assistente social Sonia Feitosa, que prestou assistência aos alunos e às famílias, diz que o episódio foi um momento de “muita dor e muita solidariedade”, principalmente para as colegas de sala de Emanuela. “Eles não pensavam que poderia acontecer algo grave”, conta.

Feitosa se emociona ao lembrar da família da adolescente. “Ela era estudiosa, fazia muitos planos para sua vida profissional. A mãe nos contou que ela tinha acabado de fazer aniversário, e eles iam fazer uma festinha para ela.”

Cada professor da rede municipal de Mossoró foi instruído, depois da tragédia, a conversar com os alunos sobre brincadeiras do tipo, conta a assistente.

O perigo dos desafios na internet

O caso de Mossoró, embora não se trate especificamente do chamado “desafio da rasteira”, evidencia os perigos de comportamentos nocivos que ganham palco e audiência na internet.

Em 2018, por exemplo, a BBC News Brasil reportou o caso de uma menina de sete anos de São Bernardo do Campo (SP) que morreu depois de inalar desodorante aerosol, copiando o que havia visto em um vídeo na internet.

A própria ONG DimiCuida, de Fortaleza, foi criada em homenagem a um jovem de 16 anos que morreu praticando o “jogo do desmaio”. E, assim como estes, há também vídeos online com desafios da canela, da camisinha, da buzina etc.

A pesquisa TIC Kids Online, que ouviu, entre outubro de 2018 e março de 2019, 3 mil famílias brasileiras com filhos entre 9 e 17 anos a respeito de seus hábitos na internet, apontou que 16% das crianças entrevistadas disseram ter visto online formas de machucar a si mesmas; e 14% tiveram contato com conteúdo que mostrava como cometer suicídio.

Quase a metade viu alguém ser discriminado na internet nos 12 meses anteriores ao estudo.

Um agravante é que, na adolescência, ainda não foi plenamente desenvolvido o córtex pré-frontal, área do cérebro responsável por controlar a impulsividade e a avaliação de riscos de nossas ações. Ou seja, adolescentes são, fisiologicamente, mais suscetíveis a situações de risco.

Por que pais não devem compartilhar os vídeos desses desafios

No entanto, embora o perigo de tais desafios seja real, ele acaba sendo potencializado — em vez de mitigado — pelo compartilhamento excessivo dos vídeos na internet, às vezes pelos próprios pais no afã de alertar os demais.

“(Compartilhar vídeos do tipo) é o oposto do processo educativo”, diz à BBC News Brasil Fabiana Vasconcelos, psicóloga da DimiCuida.

A ONG explica que “disseminar vídeos sem conteúdo educativo (em torno do desafio) gera pânico e mais disseminação, não havendo então nenhum efeito de interrupção da prática; pelo contrário, esses vídeos chegam também aos adolescentes, que curiosamente podem tentar o desafio.”

“Os pais estão disseminando imagens de crianças e adolescentes, o que é proibido por lei”, prossegue Vasconcelos — e o Artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, entre outras proteções, a “preservação da imagem” de menores de idade.

“É preciso pensar: ‘será que eu gostaria de receber um vídeo do meu filho fazendo um desafio, que pode ser que nunca saia da internet e pode surtir efeito na vida dele mais tarde?’.”

Vasconcelos defende que as famílias pensem na educação digital como algo que seja parte de sua rotina na conversa com os adolescentes, em vez de lidar com o tema apenas em momentos de pânico.

“Primeiro, é importante analisar: como está o meu diálogo com meu filho e o quanto eu conheço sobre o uso que ele faz da internet?”, sugere.

A partir daí, ela indica que pais perguntem se os filhos têm visto comportamento de risco sendo compartilhado na internet ou em seus ambientes sociais. “Você tem visto alguma brincadeira perigosa? Eu ouvi falar de uma delas. Você viu algo a respeito?”

Depois, a orientação é discutir o tema sem julgamento, mas refletindo junto com as crianças “será que vale a pena correr esse tipo de risco proposto pelos desafios?” e deixando mais palpáveis os riscos, que, para muitos jovens, ainda soam como algo abstrato.

Mas isso tem que ser um processo constante, defende Vasconcelos. “Não pode ser apenas nesses momentos de pânico, duas vezes ao ano. É algo que temos de integrar à nossa cultura. É um novo desafio, mas não podemos nos ausentar dele.”

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