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Terceiro em número de mortes, Irã enfrenta acusações de omissão frente ao coronavírus

WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Há um mês, quando a epidemia do coronavírus já se alastrava pelo Irã, autoridades locais ridicularizaram a ideia de colocar a população em quarentena. Disseram que aquela era uma tática arcaica, medieval. Que a crise passaria logo. Hoje, há 19.644 casos confirmados no país. O número de mortos – ao menos 1.433 – é o terceiro maior no mundo, atrás da Itália e da China.
“Há uma raiva enorme”, diz o iraniano-americano Amir Afkhami. A população começa a acusar o regime de incompetência e de ter mentido sobre a gravidade da crise. A situação, diz Afkhami, pode levar a convulsões políticas, como já aconteceu em outros momentos da história iraniana.
Afkhami é professor na Universidade George Washington, nos Estados Unidos. Com formação em história e medicina, ele publicou no ano passado o livro “A Modern Contagion” (um contágio moderno), justamente sobre como o governo iraniano lidou com semelhantes epidemias durante o período recente.
Em comparação a outras crises de saúde, como uma epidemia de cólera em 2005, Afkhami diz que a reação iraniana ao coronavírus foi de uma incompetência excepcional. O regime permitiu que voos continuassem a conectar a China ao Irã mesmo ciente dos riscos, por exemplo. Pequim é o maior parceiro comercial de Teerã.
Afkhami também afirma que, no início da epidemia, o Irã continuou a exportar equipamento médico à China, em vez de estocá-lo dentro do país. Funcionários de hospitais denunciam, agora, a falta de máscaras, luvas e outras ferramentas sanitárias que ajudariam a conter a crise.
Mesmo com os alertas do restante do mundo, ademais, a liderança iraniana se recusou a cancelar as eleições parlamentares de 21 de fevereiro. O regime também tardou a fechar santuários –em que peregrinos se amontoavam para tocar e beijar relíquias. O vírus é altamente contagioso.
“Foi apenas na semana passada que começamos a ver medidas mais robustas para limitar a epidemia, mas foram insuficientes e chegaram tarde”, diz Afkhami.
Por exemplo, o Irã libertou temporariamente 85 mil prisioneiros para evitar o contágio no sistema carcerário.
Ao mesmo tempo, com o início do Ano-Novo iraniano nesta sexta-feira (20), as autoridades permitiram que a população viajasse pelo país –em vez de limitar seu movimento, como outros países têm feito.
O cenário, diz Afkhami, é agravado pelas sanções impostas pelos Estados Unidos ao Irã. Tais sanções, justificadas como uma maneira de impedir que Teerã tenha um arsenal nuclear, sufocam o país e debilitam sua infraestrutura. Por um lado, há duras críticas a Washington por não aliviar essa punição. Por outro, porém, milícias ligadas ao Irã continuam a alvejar americanos no vizinho Iraque, diminuindo a possibilidade real de cooperação.
A raiva da população iraniana, no entanto, não está relacionada apenas à má gestão do regime. “As pessoas sentem que o governo mentiu para elas”, diz Afkhami. Isso porque, para a população, as autoridades esconderam o número de vítimas e afirmaram que a situação não era tão grave assim.
Desde o início da epidemia havia suspeitas de que as estatísticas oficiais não coincidiam com a realidade. Em fevereiro, por exemplo, o parlamentar Ahmad Amirabadi foi a público dizer que o regime não estava sendo transparente. Ele afirmou haver 40 mortes, enquanto o governo falava em apenas 12. O fato de um legislador levantar a voz impressionou no país, em que há limitada liberdade de expressão. “Há acusações mesmo de figuras leais ao regime”, segundo o professor.
A desconfiança da população iraniana em seu governo, é claro, não é novidade. Agora que o regime decidiu tomar medidas, a população não confia nelas. “Ações de saúde pública em escala nacional dependem na disposição da população em confiar em seu governo, nas informações oficiais”, diz Afkhami.
Sem isso, por exemplo, as pessoas não aceitam quarentenas. Cenas de mercados lotados, nesse sentido, dão conta de que a estratégia de distanciamento social não tem sido amplamente respeitada no país. É uma das ações tomadas hoje na Europa e nos Estados Unidos.
O professor prevê que, com tudo isso, o Irã pode passar por transformações sociais e políticas. Isso não deve acontecer de imediato, porém. “A história demonstra que esse tipo de convulsão causada por incompetência do governo durante pandemias acontece depois que a crise termina”, ele afirma. A prioridade, neste momento, é lidar com as pilhas de corpos e as fossas comuns.
O exemplo que Afkhami dá é a epidemia de cólera de 1904. A monarquia Qajar, que governava o Irã, foi incapaz de controlar a doença. Enquanto isso, países do oeste europeu tiveram êxito com medidas sanitárias. A crise econômica e política causada pela cólera, afirma o professor, ajuda a explicar a revolução constitucional iraniana de 1906, que foi um dos divisores de água da história moderna do país – limitando o poder dos xás.

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