América Latina

Moradores de rua: eles vivem tantos riscos, o coronavírus é mais um

(Texto atualizado com mais informações sobre atuação dos Médicos sem Fronteiras)

Por Gabriel Araujo e Leonardo Benassatto

SÃO PAULO (Reuters) – As ruas da cidade de São Paulo, mesmo quando tomadas pelos carros, não escondem seus habitantes das calçadas, viadutos e qualquer outro espaço que sirva de abrigo. Nestes dias de isolamento, o cenário mudou para os que vivem nelas e trouxe uma nova ameaça invisível: o coronavírus.

Segundo o censo mais recente da Prefeitura de São Paulo, realizado em 2019, são mais de 24 mil pessoas em situação de rua e somente metade desse número está acolhida, na maior cidade do país e epicentro brasileiro do Covid-19.

“Eles vivem tantos riscos que esse é mais um. E esse risco eles ouvem falar, percebem que a cidade mudou, mas eles não enxergam o vírus. Ninguém enxerga”, afirmou o padre Júlio Lancellotti, que há mais de três décadas se dedica a cuidar da população que vive nas ruas.

“Mas para eles existem riscos maiores, que eles sentem na vida: a fome, o frio, o abandono, o desprezo, a violência. Então chegou mais uma ameaça na vida deles”, acrescentou o padre, enquanto participava da distribuição de alimento no pátio de sua paróquia na zona leste da cidade.

“Onde eles vão lavar as mãos?”, questiona o padre Lancellotti, referindo-se à principal medida recomendada para evitar a disseminação do coronavírus. O coordenador da Pastoral do Povo de Rua lançou um apelo a autoridades locais para distribuição de álcool gel e, no local onde ele e auxiliares entregam alimentos, todos os que aguardam na fila higienizam as mãos.

Amenizar os impactos da doença aos sem-teto passou a ser visto, especialmente desde o início da quarentena em São Paulo em 24 de março, como uma medida de urgência, pois além do imenso risco de propagação do vírus, essa parcela da população começou a viver maior escassez de acesso a comida e outros tipos de ajuda.

Acolhido em um abrigo e buscando apoio de entidades e grupos de ajuda a quem vive na rua, o vendedor de balas Luiz Renato Ribeiro Júnior, de 25 anos, afirma precisar do “amor das pessoas” para se sustentar, já que suas atividades foram limitadas desde o estabelecimento do isolamento.

Ele disse prestar atenção ao que falam sobre o vírus e admitiu ter medo de ser contaminado, mas acrescentou que mesmo com o isolamento social aplicado no Estado, não pode deixar de buscar uma renda para sobreviver.

“Não há nada que eu possa fazer, eu tenho que enfrentar o vírus… Se eu ficar num lugar eu não tenho uma renda, então eu tenho que ir para cima… Eu tenho que ir para a guerra e tentar vender meu produto”, afirmou.

HIGIENE E EXAMES

No fronte da higiene, a Prefeitura de São Paulo disse ter ampliado ações durante a pandemia, afirmando que sete estações foram instaladas na região central, em áreas como as praças da Sé e da República, para oferecer duchas e sanitários à população de rua.

Além disso, a prefeitura afirmou que criou seis novos espaços de acolhimento em toda a cidade, e garante que o distanciamento social é respeitado nesses locais. Um dos centros, na zona sul, é destinado especificamente a moradores de rua diagnosticados com o coronavírus, segundo a prefeitura, que não detalhou o processo de testagem ou a quantidade de moradores de rua que passaram pelo exame.

A organização internacional Médicos Sem Fronteiras, por sua vez, especificou seus recém-iniciados trabalhos com sem-teto em São Paulo: até o início da semana, de 278 pessoas atendidas pela ONG, 37 tinham sintomas de Covid-19. Com quadros mais graves, três delas foram encaminhadas para hospitais.

A coordenadora do projeto, Ana Leticia Nery, disse à Reuters que o trabalho é baseado em um tripé composto por identificação precoce dos casos, isolamento adequado e reconhecimento do paciente grave, embora a parcela do isolamento tenha demonstrado ser um problema.

“A rede de abrigos para isolar pacientes com coronavírus é pequena, na verdade ela é minúscula, ela tem apenas 100 lugares até agora na cidade de São Paulo”, afirmou Nery, acrescentando que a organização está em contato direto com o poder público no combate ao coronavírus.

Ela destacou que a população de rua está informada sobre a doença e sente medo, especialmente diante da deterioração da condição de vida e da insegurança alimentar.

“A gente tem visto muito morador de rua novo, que fala para mim que está na rua há uma semana, porque pagava o aluguel dele a cada 15 dias, aí perdeu o emprego e não tem mais dinheiro, agora ele está na rua”, disse.

“E aquele morador de rua que estava lá há muito tempo, mas que sobrevivia de vender bala, de reciclagem, coleta de lixo… hoje todas essas fontes estão secas.”

O trabalho dos Médicos Sem Fronteiras com a população sem-teto ocorre apenas pela identificação de sintomas e quadros mais graves, uma vez que a testagem tem sido limitada no Brasil. Somente os pacientes encaminhados aos hospitais tendem a passar pelo exame para identificação do coronavírus.

EVITAR AGLOMERAÇÕES

A falta de alimentos para quem vive nas ruas não resulta apenas do fechamento de restaurantes e outros estabelecimentos determinado na cidade devido às regras de isolamento. Muitas entidades não-governamentais, que oferecem auxílio diuturnamente à população de rua, tiveram que suspender suas atividades para evitar aglomerações.

Alguns grupos ainda seguem operando, como os Anjos da Noite e o Serviço Franciscano de Solidariedade, que estabeleceu uma tenda para atendimento de 1 mil pessoas no Largo São Francisco, onde muitas vezes as aglomerações em busca de comida não são evitadas — longas filas se tornaram comuns na região.

Outras entidades, porém, não tiveram o mesmo caminho. O Grupo da Sopa, da zona leste da cidade, precisou interromper seus serviços desde 18 de março, uma vez que grande parte dos voluntários está no grupo de risco do coronavírus e as entregas reúnem aglomerações.

“Ainda não temos previsão de retorno. Decidimos voltar somente depois que for liberada a aglomeração de pessoas pelo governo do Estado”, disse Norival Nogueira, um dos coordenadores do grupo, que entregava 250 refeições toda quinta-feira em vários pontos da cidade.

Enquanto não libera aglomerações, o governo estadual decidiu no final do mês passado ampliar os serviços do restaurante popular Bom Prato por 60 dias, e espera servir cerca de 110 mil refeições por dia nesse período. Anteriormente, eram cerca de 90 mil.

Com preços que variam entre 50 centavos e 1 real, o programa passou a servir, além de café da manhã e almoço, também o jantar, enquanto o funcionamento foi ampliado para fins de semana e feriado. Entre as razões citadas pelo governo está justamente a quarentena de organizações sociais.

“O investimento total é de 18 milhões de reais, para atender pessoas que mais precisam, em situação de rua, desempregadas, sem renda ou com uma renda mínima”, disse o governador João Doria (PSDB) ao anunciar as medidas.

O Estado de São Paulo, o mais afetado pelo coronavírus no país, está em quarentena pelo menos até 22 de abril. De acordo com dados do Ministério da Saúde, são 5.682 casos e 371 mortes registradas.

(Reportagem adicional de Amanda Perobelli)

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