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Manter mobilização é desafio para grupos políticos de torcedores

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Alguns integrantes compõem a linha de frente que conduz a caminhada a passos largos e em ritmo compassado. À frente do grupo, uma faixa o apresenta para o oponente do outro lado, igualmente identificado. Há relativa uniformização cromática e ao menos um imaginário de confronto (não necessariamente físico).
Gritos de guerra e instrumentos de percussão reforçam o caráter identitário e as causas que tornam aquele grupo aparentemente homogêneo. Parece uma torcida organizada de futebol, mas não é.
Os coletivos em defesa da democracia e os grupos antifascistas que se manifestaram em diversas capitais brasileiras no último domingo (31) têm parcela expressiva de seus componentes associados a torcidas organizadas.
Com isso, segundo avaliação compartilhada por pesquisadores e lideranças tanto de torcidas quanto dos agrupamentos ideológicos, a vivência em estádios acabou levando à transposição da estética de arquibancada para os atos políticos, em especial no ocorrido na avenida Paulista, em São Paulo.
Bernardo Buarque de Hollanda, sociólogo e professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da FGV (CPDOC), identifica uma reconversão de linguagens para estabelecer uma nova maneira de manifestação.
“São três frentes que se aglutinaram: bases difusas de torcedores organizados; coletivos de torcedores politizados que atuam fortemente desde a época do impeachment de 2016; e os grupos antifascistas, com estilo mais anarquista e uma lógica de ocupação”, afirma.
A apropriação do modus operandi da arquibancada acabou levando inicialmente à identificação das torcidas organizadas como líderes dos atos, mas seus dirigentes se prontificaram a rechaçar qualquer mobilização.
Nos dias seguintes, o clima de conflagração política levou as principais uniformizadas do país a se posicionarem em tom quase unânime: seus associados são livres para manifestações individuais, mas as entidades não tomarão partido.
Há receio de enquadramento jurídico, principalmente pelo histórico de punições aplicadas por Ministérios Públicos estaduais. Segundo Buarque, porém, o ponto central da reticência é a ausência de coesão interna.
“São organizações heterogêneas, com muitas ramificações entre seus milhares de associados, e o discurso bolsonarista ecoou fortemente no etos de virilidade desses grupos durante a campanha eleitoral de 2018, seduzindo muita gente tanto nas cúpulas quanto nas bases. São entidades com intensa presença em áreas periféricas, onde o conceito de democracia é uma abstração e a realidade para muitas comunidades já é autoritária e opressora”, diz.
O pesquisador aponta também um choque geracional que fica evidente no contraste de posicionamento de antigas e novas lideranças. Os atuais presidentes de Gaviões da Fiel, Mancha Alvi Verde e Tricolor Independente, maiores organizadas do trio paulistano, são abertamente de esquerda e igualmente alinhados ao defender que as entidades não devem ter posicionamento político.
Já os representantes das velhas-guardas expressam opiniões contundentes. Paulo Serdan, presidente de honra da Mancha, adotou um discurso duro contra “ideologias fascistas e atitudes racistas”.
No Rio de Janeiro, Leonardo Ribeiro, o Capitão Léo, liderança histórica da Torcida Jovem do Flamengo, declarou apoio ao coletivo Democracia Rubro-Negra e convocou manifestação para domingo (7) no Maracanã. A atual diretoria não permitiu a utilização de bandeiras ou adereços alusivos à entidade.
O sociólogo Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões da Fiel, usou a expressão “riscar o primeiro fósforo” para resumir a intenção de ocupar o vácuo deixado por partidos de oposição.
Alex Minduín, presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas), que reúne 214 afiliadas em todo o país, defende o engajamento na luta por democracia: “Torcidas são movimentos sociais e não podem abrir mão de suas reivindicações e do Estado democrático de direito”.
Mas por que, afinal, a reação mais enérgica contra o atual governo partiu de um segmento usualmente visto como alienado?
Integrantes de torcidas organizadas e de agrupamentos ideológicos convergem no entendimento de que o torcedor de futebol no país está habituado a lidar com autoritarismo e repressão. Eles enxergam no presidente Jair Bolsonaro uma ameaça à própria existência das entidades e ao que se convencionou chamar de “direito de torcer”.
André Guerra, presidente da Mancha Alvi Verde, identifica nos protestos a “causa dos que sempre foram marginalizados, não apenas em termos sociais, mas também na condição de torcedores”.
É o mesmo raciocínio de Marcos Gama, coordenador da Porcomunas: “A opressão fez crescer um sentimento que uma hora iria explodir”. Para Leandro Bergamin, um dos fundadores do Coletivo Democracia Corinthiana, é “um grito de desespero” de contingentes periféricos que sofrem com o descaso do governo.
A oposição a elementos autoritários é recorrente na narrativa dos frequentadores de arquibancada, remetendo ao processo que eles veem como de cerceamento de direitos nos estádios, intensificado no período pós-Copa do Mundo no Brasil.
“Existe um sentimento difuso de insatisfação que vem sendo gestado com mais ênfase desde 2014, na esteira da desilusão com os megaeventos esportivos. Tem a ver com o processo de criminalização das torcidas e com a artificialidade das novas arenas, que excluíram muitos torcedores. Esses coletivos surgiram exatamente naquela época”, aponta Buarque.
Surpreendentemente, o raciocínio acabou parcialmente endossado por um dos atores que, na visão desses grupos, foi um dos que mais contribuíram para tal cenário, o procurador de Justiça criminal Paulo Castilho, que, durante mais de uma década, esteve encarregado de enfrentar a violência entre torcidas em São Paulo.
Em entrevista ao UOL, Castilho defendeu os protestos e os relacionou ao fato de os torcedores estarem cansados de “opressão autoritária”.
Danilo Pássaro, um dos líderes do movimento Somos Democracia e responsável por convocar a manifestação mais expressiva do último domingo, diz que, apesar da enorme repercussão e do interesse em buscar mais engajamento, não existe ainda definição clara sobre os próximos passos.
Com o tensionamento do ambiente político e as ameaças de reação mais incisiva por parte dos apoiadores do governo, igualmente cautelosa é a posição adotada por lideranças de outros grupos.
Movimentos criados para defender a democracia passaram a dizer nesta quinta (4) que não vão incentivar os protestos marcados para domingo. A justificativa é a pandemia de Covid-19. Partidos de oposição também pediram a filiados para não irem às ruas.
Diante do impasse, estudiosos sugerem que a expectativa da sociedade pode ter se tornado maior que a capacidade de mobilização dos torcedores. É o que pensa Victor de Leonardo Figols, historiador e editor do portal acadêmico Ludopédio: “Os coletivos não são numerosos, para além do núcleo duro, têm adesão em momentos pontuais, e pode faltar fôlego para avançar nesse embate.”
É como se faltasse lastro social nos agrupamentos consultados: dispersos e sem institucionalização, eles têm dificuldade até para estimar o número de seus componentes.
O desafio fica ainda maior quando se considera o efeito do clubismo, com aficionados de clubes rivais mostrando pouca disposição para o diálogo e certa disputa por protagonismo na tomada de decisões.
“A solução seria formar uma frente ampla, atraindo outros segmentos sociais, mas isso depende de poder de articulação e de fazer certas concessões. Aí passa a haver o risco de cooptação da pauta original, em cenário semelhante ao observado nos protestos de junho de 2013”, finaliza Figols.

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