Exterior

Em livro, afegã conta como se vestiu de homem por 10 anos para sobreviver ao Taleban

VIÇOSA, MG (FOLHAPRESS) – Quando abriu os olhos e percebeu o rosto assustado da mãe, com rugas e olheiras que nunca tinha visto, e em seguida sentiu que seu corpo enfaixado não respondia a seus comandos mentais, Nadia Ghulam não entendeu onde estava nem o que havia acontecido.
Aos poucos, foi processando as explicações: uma bomba tinha caído em sua casa e as queimaduras que ela sofreu eram tão graves que passara seis meses em coma, desenganada pelos médicos, em um hospital improvisado com colchões no chão.
Até que acordou e se deu conta de que a vida que conhecia, em uma casa de classe média de Cabul onde brincava com o irmão no jardim e se deliciava com os banquetes que os pais organizavam para os amigos, não existia mais. “Só tinha nove anos, mas o meu tempo de viver a infância tinha terminado.”
Com a interrupção precoce de sua infância, viriam também outras perdas provocadas pela guerra e pela tomada do poder pelos militantes islâmicos radicais do Taleban. O irmão adorado de Nadia, Zelmai, foi assassinado. Seu pai sofreu um colapso e ficou com problemas psiquiátricos permanentes.
A família empobreceu e, aos 11 anos, cansada de vagar com a mãe sem endereço fixo ou comida, a garota viu que teria que assumir o sustento da casa.
Mas havia um problema: o Taleban não permitia que mulheres trabalhassem. Ela, então, decidiu se disfarçar de homem e assumir o nome do irmão – um processo que durou dez anos e que a colocou sob risco constante de morte e mexeu com seu próprio senso de identidade.
A trajetória de Nadia nesse período é contada no livro “O Segredo do meu Turbante” (Globo Livros, 304 págs., R$ 49,90), recém-lançado no Brasil e publicado inicialmente em 2010, quatro anos após ela se mudar para a Espanha, onde vive.
Por ter subvertido as restrições às mulheres estabelecidas pelo Taleban, a afegã costuma ser comparada à ativista paquistanesa Malala Yousafzai, que desafiou o mesmo grupo para ir à escola.
Na Catalunha, Nadia foi acolhida por um casal de idosos, que considera seus segundos pais, e passou por cirurgias para reconstrução do rosto. Hoje, aos 35 anos, é educadora social com mestrado em desenvolvimento internacional e está à frente da associação Ponts per la Pau, que ajuda na integração de imigrantes na Catalunha e na educação de crianças no Afeganistão.
Também auxilia mulheres refugiadas que chegam à ilha de Lesbos, na Grécia, um dos principais pontos de chegada à Europa de pessoas que fogem de conflitos.
Quando chegou ao novo país, Nadia chorava dizendo que não queria voltar a assumir a identidade de mulher para não abrir mão de sua independência. Em entrevista à reportagem, ela conta como se sentiu ao perceber que poderia “andar de bicicleta, ter amigos, trabalhar e fazer muitas coisas” que antes só podia vivenciar por se vestir de homem.
“Quando vi que podia fazer tudo o que fazia no Afeganistão, mas me comportando como a mulher que sou e sem ter que me esconder, senti uma felicidade enorme”, lembra. “Isso me fez crescer como pessoa e meu deu asas. Para mim, isso é liberdade.”
Ao trocar o véu pelo turbante masculino, Nadia constatou, porém, que ser homem no Afeganistão também não é fácil. Aos 11 anos, ela se tornou lavradora e desempenhava um serviço exaustivo numa fazenda, mal ganhando o suficiente para seu sustento. Franzina e comendo pouco, ainda complementava a renda fazendo manutenção de poços, um trabalho arriscado e pesado.
“Em um país em guerra, todo mundo sofre, não só as mulheres. Os homens se angustiam porque cada dia que saem de sua casa, não sabem se vão voltar. Têm medo de perder sua família, arriscam a vida para poder manter os seus”, afirma.
Um exemplo de sofrimento extremo foi o vivido por seu pai, um bem-sucedido farmacêutico que reagiu às tragédias familiares com um transtorno mental incapacitante. Segundo Nadia, 80% dos afegãos padecem de algum tipo de transtorno emocional, de maior ou menor gravidade.
“Os psiquiatras e psicólogos falam de estresse pós-traumático, mas no Afeganistão estamos há mais de 40 anos em guerra. Para nós, cada dia é uma situação traumática. Não estamos passando por algo circunstancial, é muito mais que isso e continuamos vivendo a mesma realidade.”
O conflito no Afeganistão entrou em sua quinta década, e o país é o terceiro do mundo com mais pessoas deslocadas à força, atrás da Síria e da Venezuela. Cerca de 2,7 milhões de afegãos ainda vivem no exterior e outros 2,6 milhões são deslocados internos, segundo dados recentes do Acnur (alto comissariado da ONU para refugiados).
Nadia já retornou a seu país de origem algumas vezes, a trabalho e para visitar os pais. Volta de algumas dessas viagens com esperança. De outras, não. “Houve muitos avanços nos direitos das mulheres, que agora podem sair, estudar e trabalhar. Mas a violência aumenta e as consequências da guerra e da pobreza prejudicam a população em geral e as mulheres em particular.”
A afegã, que também já viveu por um ano em um campo de refugiados com a família dentro do próprio país, diz que, por mais que a situação esteja ruim em sua terra, migrar não é fácil para ninguém. “Os que conseguimos chegar até a Europa somos sobreviventes a quem nos custou muito alcançar nossa meta”, afirma.
Todos os amigos que Nadia tinha na adolescência estão hoje no exílio. Por segurança, ela não contava que era mulher nem para os mais próximos, e alguns deles, quando souberam a verdade com a repercussão do caso, não compreenderam. “Desejo que tenham muita sorte na vida e que sigam adiante. Como eu estou fazendo.”
Ela afirma que quis publicar o livro – escrito com a jornalista espanhola Agnès Rotger – quando viu que as pessoas na Catalunha só conheciam o Afeganistão por estereótipos. “Quis explicar qual é a verdadeira luta das mulheres afegãs, suas esperanças e suas fortalezas. Queria que o mundo entendesse que podemos ir adiante com conhecimento, estudos”, diz. “A guerra pode afetar qualquer país: hoje é comigo, amanhã pode ser com você.”
Trechos do livro “Durante todo o tempo em que fui um menino, não podia relaxar nunca da tensão. E isso era terrivelmente cansativo. Duríssimo. Mas naquele primeiro dia eu só pensava em aprender a usar o turbante para que não caísse nunca (a partir daquele dia não o tirei nem para dormir). O tecido, grosseiro, de cor marrom, fora dado por minha mãe. Quando ela o colocou em mim pela primeira vez, foi como um ritual. Adeus à menina, bem-vindo o menino. Ainda na segurança entre quatro paredes – chamar de casa ainda era muito prematuro -, ambas nos permitimos chorar.”
“O casamento de alguém sempre era má notícia, principalmente para as meninas. Já dizia minha mãe: ‘As mulheres morrem duas vezes: no dia em que se casam e no dia em que deixam este mundo. E nas duas vezes estão vestidas de branco.'”
“Minha mãe também fazia parte da grande maioria de pessoas que pensavam que, para uma mulher, os estudos não servem para nada. Acreditam que, geralmente, no Afeganistão, as mulheres não saem de casa nem sequer para fazer compras, por isso, não precisam ler as placas, nem comparar preços nem, claro, precisam aprender uma profissão, porque nunca trabalharão fora de casa.”
“Eu aprendera a lidar com eles [as autoridades do Taleban] e, quando conseguia dominar o medo de ser descoberta, me movia como um peixe dentro d’água. Chegaram quando eu tinha 11 anos, e foram embora quando eu estava com 16. Durante aquele tempo, eu tinha ficado mais velha e era quase impossível lembrar de como era a vida antes e o que esperar do meu futuro. O que deveria fazer agora? Aquele personagem que adotara temporariamente já fazia parte de mim, eu não podia simplesmente mudar a roupa de menino pela de menina.”

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