Cultura

Rua Augusta vive dias de silêncio com gatos pingados de copo na mão

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem passa à noite pela rua Augusta durante este período de quarentena encontra um cenário muito diferente daquele pelo qual a via é conhecida. Famosa pela vida noturna agitada e aglomeração de pessoas nos finais de semana, a rua mais emblemática do Baixo Augusta, região central de São Paulo, está vazia e tranquila.
A quarentena tem sido um desafio para os donos de bares e clubes noturnos. Proprietários afirmam que o movimento já vinha caindo devido à crise econômica que o país enfrenta. Com o fechamento forçado, alguns baixaram a porta definitivamente, outros estão tentando se reinventar e há ainda os que esperam recuperar parte do movimento com a flexibilização iniciada na última segunda-feira (6).
O silêncio e as portas baixadas ampliam a atmosfera desértica da região que, em tempos que agora parecem longínquos, lembrava um grande boulevard. Uma iluminação mais clara também causa estranheza. Segundo o Departamento de Iluminação da Prefeitura de São Paulo (Ilume), a remodelação com lâmpadas de LED e mais postes já estava prevista para este ano e foi feita entre março e junho.
Descendo a rua a partir da avenida Paulista em direção ao centro, vários imóveis ostentam placas de “aluga-se” e o típico vai-e-vem de botequeiros e baladeiros se resume à circulação de umas poucas pessoas com copo ou cerveja na mão, bebendo timidamente enquanto caminham.
No quarteirão entre as ruas Dona Antônia de Queirós e Marquês de Paranaguá, um dos mais movimentados nos finais de semana, o Avareza Beer & Burguer, que funcionava há um ano, fechou definitivamente e entregou o imóvel no início da quarentena. Já o Beco 203, balada que funcionava no local há 10 anos, fechou pouco antes, na primeira semana de março.
Segundo uma funcionária da casa, o movimento vinha caindo e já tinham decidido fechar, mas foram afetados pela pandemia na hora de passar o ponto. “Com a decretação da quarentena, todos os interessados desistiram e tivemos que arcar com as perdas”, afirma.
Próximo dali, o Eagle, clube voltado para a comunidade gay dos ursos -homens de corpos grandes, com barba e pelos no corpo-, encontrou uma solução inusitada. A rede internacional, famosa por festas como Concurso Mr. Urso e Leather Party, passou a oferecer, desde junho, um delivery de sanduíches. Montou também um pequeno mercado, onde vende bebidas e produtos de mercearia, como cereais e enlatados.
Como a casa não tinha um espaço para o preparo de comida, o antigo caixa foi adaptado para servir de cozinha e o móvel que compunha o bar, reorganizado para abrigar os produtos do mercadinho. “Tentamos empréstimo das linhas de crédito do governo e no setor privado, mas não conseguimos. O jeito foi nos reinventarmos”, diz Rudnei Rezende, DJ e um dos sócios da casa.
Outras baladas, como o Selva Club e o Espaço Desmanche, têm festas anunciadas em suas redes sociais a partir de setembro, mas ao clicar no evento, um texto informa que foram adiadas. Parte destes clubes vem fazendo campanhas de financiamento coletivo e compra de vouchers a serem utilizados na reabertura. Outros estão oferecendo uma programação de festas online e lives para tentar manter o público engajado.
Na contramão, o empresário Bruno Rodrigues Santos viu uma oportunidade na crise, como gosta de enfatizar. Ele vinha procurando um imóvel na região com o intuito de abrir uma franquia de cervejaria artesanal, mas o aluguel e a luva (valor pago ao proprietário pela locação de prédios comerciais em localizações muito valorizadas) eram sempre muito altos. Conseguiu negociar uma luva bem abaixo do valor inicial e um aluguel cerca de 60% mais barato.
Mesmo com os estabelecimentos fechados, a região continua atraindo alguns aventureiros. No sábado (4), um casal sentado ao pé deu uma farmácia na esquina da rua Dona Antônia de Queirós tomava catuaba, direto da garrafa. A bebida barata, tipicamente vendida por ambulantes que costumavam lotar as calçadas e também desapareceram, havia sido comprada em um supermercado.
A noite estava fria e melancólica, ninguém por perto. “Viemos pra cá hoje porque estávamos com saudade da Augusta, mas achamos que teria mais gente”, disse uma delas, que variava entre colocar e tirar a máscara para beber. As duas são “personal shoppers” de um aplicativo de entregas.
Na quarta-feira anterior, três amigos bebiam perto do Bar da Loca, que costumava reunir um grande número de pessoas antes da quarentena, na esquina da rua Peixoto Gomide com a Frei Caneca. Neste dia, a rua estava deserta e parcialmente interditada, um caminhão barulhento fazia obras no pavimento.
Encostados na parede, de copo na mão e máscara no queixo, o grupo conversava efusivamente e sem respeitar a recomendação de um metro de distância. Eles tinham vindo de bairros distantes para comemorar o início das férias de um deles. As rodadas de cerveja eram abastecidas no delivery dos bares próximos. “A gente vem aqui há anos. Não importa que não tem ninguém, viemos para bater papo e relaxar”, disse o mais empolgado.
Outro bar que costumava lotar as calçadas é o Ibotirama. Na última sexta-feira, tudo que se via por ali eram duas prostitutas aguardando clientes. A prostituição sempre fez parte de uma espécie de charme decadente da região, mas a maioria das casas masculinas também está de portas fechadas. “Algumas estão funcionando clandestinamente, mas a gente prefere vir pra rua e evitar a aglomeração”, diz uma delas. As duas estavam de máscara.
O diretor de teatro Renato Andrade mora na Augusta há 20 anos. Em 2013, ele montou uma peça chamada “Baixo Augusta”, que tratava da chegada das baladas e posterior gentrificação da região. “Muitos lugares estão fechando. Tinha me acostumado com o barulho da Augusta, era uma espécie de vibração coletiva. Agora, qualquer ruído ecoa como se fosse uma discussão dentro de casa. Todo mundo corre na janela para ver o que está acontecendo”.

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