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É momento de deixar os desencontros no passado, diz novo embaixador argentino

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Daniel Scioli chegou ao Brasil na segunda-feira (10) com a difícil missão de chefiar a embaixada argentina no momento mais tenso da relação entre os dois países nas últimas décadas.
Não bastassem as trocas de provocações entre os presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández, o comércio entre os maiores sócios do Mercosul despencou com a crise do coronavírus.
“É momento de deixar os desencontros no passado e partir para uma agenda positiva e construtiva, com um diálogo franco e sincero”, diz Scioli.
Em entrevista, ele afirma que pretende centrar sua missão na agenda comercial e desvia de temas espinhosos que hoje opõem Fernández e Bolsonaro, como a crise na Venezuela.
Ele nega ainda que a Argentina atue para bloquear os acordos comerciais negociados pelo Mercosul.
“O acordo com a União Europeia foi assinado e é uma questão do estado argentino. Agora estamos em outra etapa, de revisão do texto. Mas os maiores questionamentos hoje vêm de países europeus”, argumenta.
Aos 63 anos, Scioli é uma das figuras mais importantes do peronismo: já foi vice-presidente, governador da província de Buenos Aires e candidato à Casa Rosada em 2015, quando foi derrotado em segundo turno por Mauricio Macri.

PERGUNTA – As relações entre Brasil e Argentina estão marcadas por desconfianças e os dois governos parecem discordar em praticamente tudo. Com qual objetivo o sr. chega a Brasília?
DANIEL SCIOLI – É tempo de priorizar o interesse comum. É o momento em que a adversidade pode ser oportunidade, para entender que juntos vamos sair mais rápido das consequências sociais e econômicas da pandemia. É momento de deixar os desencontros no passado e partir para uma agenda positiva e construtiva, com um diálogo franco e sincero.
Tenho a sorte de conhecer o presidente Fernández há 25 anos, com quem tenho amizade e muita confiança, e lhe perguntei com toda a claridade qual vínculo devemos ter com o governo brasileiro. Ele me disse: “diga ao presidente Bolsonaro que minha vontade é trabalharmos juntos, a partir do respeito à vontade popular nos dois países. E deixando para trás os desencontros, olhando para o futuro”.

Mas em que áreas pode haver convergência? Em diversos temas os dois governos têm opiniões conflitantes.
DS – Acredito que a promoção comercial é benéfica para ambos os países. Nós chegamos a ter US$ 40 bilhões em intercâmbio comercial e hoje caímos quase 40% no volume dessa relação. Estamos falando de trabalho, fábricas produzindo para um mercado e para o outro, de automóveis e do complexo agroalimentário mais potente do mundo. Há interesses comuns nessa agenda. A questão não é só quanto a Argentina vende para o Brasil ou vice-versa. A pergunta é: como damos maior envergadura e maior volume a isso juntos? Porque isso vai gerar benefícios para toda a região.

Algumas medidas adotadas pelo governo Fernández são criticadas no Brasil e acusadas de protecionistas. Isso não atrapalha essa agenda de cooperação? DS – Pensei que você ia me fazer essa pergunta e vou te dar a resposta por escrito.
[Scioli se levanta e busca tabelas sobre importação de produtos brasileiros na Argentina]
Olha, os números são claríssimos. Somente uma porcentagem mínima de licenças de importação não foram autorizadas [pelo governo argentino]. Por outro lado há praticamente US$ 1 bilhão de dólares [em licenças] aprovadas que ainda não foram utilizadas.

Brasil e Argentina também têm opiniões diferentes em relação à crise na Venezuela. Há algum espaço para os dois países dialogarem nesse assunto?
DS – São assuntos que foram conversados quando o chanceler [Felipe Solá] veio a Brasília [em fevereiro] e que são abordados pelos ministérios de [relações] exteriores. São questões que têm a sua agenda, mas eu acho muito importante o que acabamos de falar. Os temas com pontos de vista distintos sobre situações de outros países continuarão sendo conversados entre Brasil e Argentina, porque o diálogo é o caminho. Agora, para além da ideologia de cada governo, aqui temos que dar prioridade buscando o que é benéfico para os dois países nas coincidências que temos.

Mas a crise na Venezuela é discutida entre Brasil e Argentina no Grupo de Lima, por exemplo.
DS – Vão discutir isso no âmbito dos ministérios de relações exteriores. Minha missão aqui está vinculada fundamentalmente à agenda comercial.

Por que a Argentina desistiu de se retirar das negociações comerciais do Mercosul com terceiros países?
DS – Isso [a saída das negociações] foi mal interpretado. Vamos ficar com a última decisão [de voltar atrás], para dentro do Mercosul analisarmos outros possíveis acordos que sejam benéficos. Sabemos que as estruturas produtivas dos nossos países se fragilizaram, as economias locais sofreram danos com a pandemia. Temos que analisar caso a caso e a Argentina está no Mercosul sentada em todas as mesas de negociação.

Mas, ao permanecer na mesa com opiniões diferentes dos demais sócios, a Argentina não está buscando bloquear as negociações?
DS – A Argentina defende os interesses argentinos e em todos os países ocorre o mesmo. Olhe para o que está ocorrendo na União Europeia, como há países que estão apresentando opiniões diferentes sobre o acordo com o Mercosul. A pandemia exigiu uma reconfiguração da agenda econômica e uma reflexão sobre muitas coisas. Assim como, possivelmente, tempos atrás o presidente Bolsonaro não pensava em implementar essa política do auxílio emergencial. Mas ele a implementou, e em boa hora. Porque é repensar o papel do estado diante das circunstâncias.

Sobre o acordo comercial com a União Europeia, o governo Fernández apoia o texto assinado no ano passado?
DS – Estamos no momento de revisão legal do acordo. E os questionamentos não estão vindo da Argentina, mas de outros países.

Mas qual a posição da Argentina?
DS – O chanceler [Solá] e o presidente [Fernández] foram muito claros sobre esse tema: é um acordo que está assinado, mas que está sob revisão [legal]. A disposição da Argentina —um país que leva adiante uma negociação árdua e dura com seus credores, de forma exitosa e chegando a um acordo— mostra com toda claridade de que lado está. Do lado de integrar-se ao mundo inteligentemente, com um capitalismo maduro e responsável, que possa levantar o país de baixo para cima e não esmagá-lo de cima para baixo, como ocorreu no governo anterior.

Desculpe, não está claro se a argentina apoia ou não o acordo assinado em 2019.
DS – O acordo com a União Europeia foi assinado e é uma questão do estado argentino. Agora estamos em outra etapa, de revisão do texto. Mas os maiores questionamentos hoje vêm de países europeus, você sabe disso. Há um montão de cláusulas, prazos e setores econômicos que estão em revisão. Mas o acordo está assinado pelo estado argentino, é um compromisso que foi assumido. É como a dívida: não dissemos aos credores que fossem reclamar seu dinheiro com o governo anterior. São questões de estado. O governo [Fernández] fez uma revisão dessa dívida e conseguiu uma negociação exitosa.

Meses atrás o presidente Fernández chegou a se referir ao Brasil como um risco de contaminação por Covid-19 para a região. O sr. concorda?
DS – Eu vejo a necessidade —no espírito e nas instruções que o presidente Alberto Fernández me deu— de que os desencontros e questões que podem ter gerado ruído fiquem para trás. O que ele [Fernández] busca como homem de estado? O interesse da Argentina, e o melhor para o país é estar bem com o Brasil e trabalhar junto. Então é virar a página. Entendo que as declarações trocadas podem ter interesse jornalístico, que fulano disse isso ou beltrano aquilo… bom, eu estou aqui para tentar e colocar toda minha experiência para deixar atrás os desencontros e passar a uma agenda positiva e potente para os dois países.

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