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Bolsonaro repete cartilha dos Kirchner com uso político do futebol

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já criticou mais de uma vez a eleição de Alberto Fernández, no ano passado, para presidir a Argentina. Ele tem como vice Cristina Kirchner, em uma volta da esquerda ao poder no país após o mandato de Mauricio Macri (2015-2019).

Os Kirchner comandaram o vizinho brasileiro de 2003 a 2015. Néstor, morto em 2010, foi presidente de 2003 a 2007 e acabou sucedido pela mulher, Cristina.

Apesar das ideologias opostas, Bolsonaro e os Kirchner têm uma visão semelhante de como o futebol pode servir para usos políticos.

No Brasil, o último exemplo aconteceu nesta terça-feira (13), durante a transmissão da partida da seleção brasileira contra o Peru, pelas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022, na TV Brasil. O narrador André Marques leu textos em que mandava saudações a Jair Bolsonaro e a outros integrantes do governo.

A partida foi mostrada pela TV estatal e suas afiliadas, com imagens cedidas pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol). A entidade comprou os direitos de transmissão do confronto que seria exibido, até cerca de uma hora antes de a bola rolar, apenas em serviços pagos de streaming.

A sugestão partiu de Fabio Wajngarten, secretário-executivo do Ministério das Comunicações.

Na Argentina, Cristina Kirchner foi a responsável pela implantação, em 2009, do Futebol para Todos, programa governamental em que o Estado comprava os direitos de transmissão das partidas dos campeonatos nacionais para serem mostrados na TV Pública e emissoras simpáticas ao governo.

O plano de estatizar o esporte começou a ser gestado quando seu marido assistia a um jogo do clube do coração. Ele já não era mais presidente do país.

“Néstor Kirchner estava vendo um clássico entre o seu time, o Racing, contra o Independiente. No intervalo, apareceu uma publicidade de Daniel Scioli, governador da província de Buenos Aires. Kirchner se incomodou com isso. E a partir daí começou a ser planejada a compra dos direitos do futebol argentino”, conta o jornalista argentino David Cayón, co-autor ao lado de Bernardo Vázquez do livro “Futebol para Todos: a política dos gols”.

O objetivo era que Cristina, e não outros políticos, passasse a ocupar esse espaço de atenção dos torcedores.

Na investigação realizada por Cayón e Vázquez para o livro, a dupla descobriu que Julio de Vido, ministro de Planificação Federal nos governos de Néstor e Cristina, conseguiu mudar a data de um jogo do Boca Juniors (ARG) porque ele, torcedor fanático do clube e dono de um camarote na Bombonera, tinha uma festa familiar no mesmo dia.

Eram comuns, durante os jogos na TV pública, narradores e comentaristas fazerem odes a Cristina e às políticas do governo. Alguns deles, como Javier Vicente e Alejandro Apo foram apelidados de “narradores militantes” e diziam que os anos de Kirchner no poder representavam a “década ganha”.

O Futebol para Todos durou até 2015, quando Mauricio Macri, ao assumir a presidência, encerrou a distribuição de dinheiro para os clubes e para a AFA (Associação de Futebol Argentino). De 2009 e 2015, o programa custou aos cofres públicos 10 bilhões de pesos (R$ 719 milhões em valores atuais).

O governo Bolsonaro não comprou direitos de transmissão dos principais campeonatos e pelo menos até agora não anunciou planos concretos de fazê-lo, mas compartilha a ideia de aproximar-se dos clubes e de seus dirigentes para ter ganhos políticos.

Já se tornou conhecida a imagem do presidente brasileiro com camisas de times, algumas não oficiais. Na Copa América do ano passado, entrou no gramado do Mineirão no intervalo da semifinal contra a Argentina. Recebeu vaias e aplausos. Após a conquista do Brasil no torneio, apareceu para comemorar com os jogadores e tirou foto com a taça.

Igual a Néstor Kirchner, que nunca escondeu ser torcedor do Racing, tinha sua imagem ligada à do clube e jogava peladas com a camisa azul e branca, Bolsonaro gosta de estar conectado aos clubes do país.

No início do seu mandato, ia principalmente a jogos do Palmeiras, seu time do coração. Mas depois diversificou e compareceu a confrontos de Flamengo e Santos, por exemplo.

Além dos benefícios de estarem ligados ao esporte campeão de popularidade, tanto Cristina Kirchner quanto Bolsonaro vivem às turras com os maiores grupos de comunicação de seus países.

O brasileiro publicou em junho medida provisória que altera a forma como os direitos de transmissão dos jogos de futebol são negociados. A MP deu ao mandante da partida a prerrogativa de vender a exibição das partidas, sem precisar da anuência do adversário, como determina a Lei Pelé.

Era uma forma de fustigar a Rede Globo e diminuir o seu poder de barganha com as equipes. Como não foi colocado em votação no Congresso, o texto deverá perder validade nesta semana.

O Futebol para Todos foi uma forma de tirar do grupo Clarín, e de seus canais fechados e de pay-pew-view, o controle sobre a exibição do futebol. Cristina Kirchner dizia que a empresa era responsável pelos “gols sequestrados”, porque nenhuma emissora poderia exibi-los antes de determinado horário.

O sequestro a que Cristina se referia acontecia no programa Futebol de Primeira, parceria do Grupo Clarín com a empresa Torneos y Competencias, que era exibido nos domingos às 22h.

Se um time jogasse em uma sexta-feira à noite, por exemplo, seus torcedores tinham que esperar até as últimas horas do fim de semana para ver os gols da partida.

Jorge Lanata, jornalista político influente na Argentina, é opositor dos Kirchner. Seu programa, no domingo à noite, é transmitido pelo canal 13, do Grupo Clarín. Na época do Futebol para Todos, jogos de Boca Juniors ou River Plate (ARG), os dois maiores clubes do país, eram colocados no mesmo horário para tirar audiência de Lanata.

“Havia um outro programa, de jornalismo político estatal, que se chamava ‘6, 7, 8’. Sendo pró-governamental, ele fazia oposição aos meios opositores. Não falava do governo, mas de quem falava mal do governo. Como o grupo Clarín. E os narradores do Futebol para Todos anunciavam esse programa durante os jogos”, diz Sergio Levinsky, jornalista e sociólogo argentino, autor do livro “AFA: o futebol passa, os negócios ficam”.

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