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Físico leva astronomia para quilombo no RS e une a observação do céu a questões sociais

PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Longe da poluição luminosa, que prejudica a observação das estrelas nas grandes cidades, o menino do interior olhava para o espaço e admirava as constelações. Ele se questionava sobre os mistérios do Universo, e a agitação da comunidade em torno da passagem do cometa Halley, em 1986, só aumentou sua curiosidade sobre o Cosmo.

“Cresci vendo esse céu muito bonito. Queria saber sobre os planetas”, conta o astrofísico Alan Alves Brito, 42, de Feira de Santana, na Bahia. Hoje ele é professor do Instituto de Física da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e coordena o Observatório Astronômico, que funciona em um prédio de 112 anos no centro histórico de Porto Alegre.

O pesquisador fez mestrado e doutorado na USP (Universidade de São Paulo), e estágio de pós-doutorado em países como Austrália e Chile.

“Busco entender como a galáxia se formou do ponto de vista da evolução química, determinando a quantidade de elementos químicos, como magnésio, silício, cálcio e ferro presentes nas estrelas velhas, de bilhões de anos”, explica.

Brito faz parte da minoria de acadêmicos negros do país. “Quando chego em um lugar e digo às pessoas que sou astrofísico, elas perguntam: ‘educação física?’. Respondo ‘Não, astrofísica’. Isso acontece porque não associam pessoas negras ao estereótipo de cientista. E, se for cientista, sempre relacionam à [pesquisa da] África, nunca às engenharias e às carreiras tecnológicas, por exemplo. Temos que desconstruir isso retratando mais as histórias invisibilizadas”, diz.

Quando garoto, acordava muito cedo para assistir na televisão ao programa Globo Ciência. “Eu era muito fã”, recorda. Ele participou do projeto Ciranda da Ciência, ligado ao programa, montando um laboratório em seu bairro. “Mas o laboratório não foi muito longe porque não tinha dinheiro para mantê-lo e meu verdadeiro desejo era por astronomia”, conta.

Naquele período, o único observatório astronômico da cidade era privado, mas ele não demoraria a ser incorporado à Uefs (Universidade Estadual de Feira de Santana), onde Brito estudou e foi um dos primeiros bacharéis formados em física, em 2001.

“Estudei em uma escola técnica, também estadual. Tive excelente formação em física, matemática, uma formação muito sólida nessas áreas. Sabia que eram importantes para astronomia, mas o único curso de astronomia na época era na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Não tinha como sair da Bahia para o Rio. Aí surgiu um curso novo na minha cidade, justamente o de física na Uefs”, recorda.

Durante o curso universitário, deparou-se com uma boa surpresa: a chegada de dois professores, ambos astrônomos. Brito passou, então, a fazer curso extensão orientado por Vera Martin e Paulo Poppe.

“Isso mudou minha vida. Fui bolsista do CNPQ [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], ganhei prêmios e viajei para apresentar trabalhos”, diz. A primeira viagem do tipo foi justamente para Porto Alegre, cidade onde moraria a partir de 2014, já como professor concursado na UFRGS.

Na capital gaúcha, decidiu aproximar a astronomia da comunidade, incluindo os quilombolas. “A ciência não é neutra. Eu sou um corpo em diáspora. As questões de origem geográfica, raça e gênero são marcadores que atravessam minhas existência e trajetória profissional desde sempre”, diz.

Dessa inquietação surgiu o projeto Akotirene Kilombo, na comunidade quilombola Morada da Paz, em Triunfo, cidade a 48 km de Porto Alegre. Inicialmente, o projeto era dedicado apenas a incluir as meninas quilombolas na ciência, mas depois foi expandido.

“Quero discutir o céu, mas não apenas na perspectiva da ciência moderna e contemporânea. Quero discutir o céu na perspectivas dos povos quilombolas e indígenas. Esses povos olham para o céu, fazem perguntas e relacionam o céu com as práticas diárias. É um encontro de saberes”, diz.

Centenas de crianças e adolescentes já participaram de atividades e palestras, e estudantes de fora do quilombo puderam conhecer o Morada da Paz, numa integração com a comunidade escolar. Um telescópio foi adquirido para observação do céu com as crianças. Conteúdos escolares, como a tabela periódica, foram apresentados dentro desse contexto – os estudantes costumam ficar maravilhados quando descobrem que os elementos da tabela têm origem no espaço.

“As constelações são narrativas, Na história da humanidade, todos os povos olharam para o céu e fizeram suas narrativas, incluindo os indígenas e quilombolas”, diz Brito.

O professor é finalista do Prêmio Jabuti 2020 com o livro “Astrofísica para a educação básica: a origem dos elementos químicos no Universo” (Appris Editora), na categoria de ciência, e vai estudar a situação das escolas quilombolas no Rio Grande do Sul e pelo país.

Ele também criou a exposição virtual Cosmologias Racializadas, do Observatório Astronômico da UFRGS. Nela, faz reflexões que relacionam astronomia a questões sociais, como a pandemia de Covid-19 e a discussão sobre isolamento e aglomeração. “Como nós, as estrelas são sociáveis”, escreveu sobre uma foto de Hyades, o aglomerado de estrelas mais próximo do Sol, na exibição. Na imagem, destaca-se a estrela Aldebran, na cor amarela. “É a mais brilhante no campo, mas não pertence ao aglomerado de Hyades, formado há 625 milhões de anos.”

“As distâncias no Universo são imensas. O que, afinal, significa isolamento ou distanciamento social? As pessoas trans, indígenas e quilombolas têm vivido, há muito, em isolamento e distanciamento social”, escreveu o professor.

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