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Invasão nos EUA foi alerta para redefinir liberdade de expressão, diz pesquisadora

BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) – “Trump pode subir num caixote no meio de um parque em Nova York e dizer o que quiser. Mas, se for estímulo ao ódio racial, ao motim ou à insurreição —o que é ilegal—, quem estiver carregando essa mensagem tem que ser responsabilizado”, diz a cientista política Jane Suiter, diretora do Instituto para a Mídia e o Jornalismo do Futuro e professora da Universidade de Dublin.

Especialista em desinformação e democracia, Suiter foi premiada como pesquisadora do ano de 2020 pelo Conselho Irlandês de Pesquisa, devido a análises das mensagens populistas e de sistemas de comunicação que as apoiam ou dificultam.

Para ela, a invasão do Congresso americano —insuflada por Donald Trump nas redes sociais— foi um alerta de que os EUA têm que rever seus conceitos de liberdade de expressão e discutir uma regulação das plataformas digitais, na direção da que tem sido adotada na Europa.

“Acredito que os legisladores já começaram a pensar nisso quando a polícia precisou entrar no Congresso para protegê-los”, afirma a professora, que lidera projetos de combate à desinformação.

A responsabilidade é também do jornalismo profissional, diz Suiter, e os países que quiserem proteger suas democracias terão que redesenhar instituições e comunicação. “Temos que fazer as pessoas perceberem como os autoritários manipulam as emoções, para que possam reconhecer quando estiverem sendo os alvos.”

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Pergunta – Fora da Presidência, Trump terá o mesmo alcance?

Jana Suiter – A menos que ele esteja atrás das grades, acredito que vá iniciar a Trump TV. É lá que espero vê-lo em seis meses, e a Trump TV certamente vai disseminar falsidades. Nesse ambiente, os EUA precisam repensar a liberdade de expressão, e acredito que os legisladores já começaram a pensar nisso quando a polícia precisou entrar no Congresso para protegê-los.

O livre-discurso como é visto hoje pelos americanos não está se mostrando eficaz. Talvez eles comecem a olhar mais para o que os europeus estão fazendo para regulamentar as plataformas da internet e controlar o discurso de ódio. A administração de Joe Biden terá que olhar para isso com cuidado, e espero que os eventos em Washington tenham servido de alarme.

Como estabelecer o limite do que deve ou não ser bloqueado, do que pode ou não ser publicado?

JS – Não é uma questão de proibir as pessoas de falar. Mas elas não terão uma audiência garantida. Trump pode subir num caixote no meio do Washington Square Park, em Nova York, e dizer o que quiser. Haverá repórteres, e eles vão relatar, seja na Fox, na Trump TV, no Twitter ou no Facebook, e essas plataformas terão que assumir a responsabilidade. Se for um estímulo ao ódio racial, ao motim ou à insurreição, tudo isso é ilegal. É assim que será na Europa. Trump pode dizer o que quiser, mas quem estiver carregando essa mensagem será responsabilizado se ela for criminosa.

O meio de cultura em que esse incitamento ao ódio e à violência caiu também era propício?

JS – O ponto central é o uso da polarização. É como os humanos, todos eles, são vulneráveis a argumentos que alimentam emoções, e a psicologia pode ser usada para que eles se voltem uns contra os outros.

Trump e autoritários em todo o mundo sabem como explorar o medo. As pessoas querem estar numa tribo, e eles sabem explorar esse desejo para fazê-las se sentir ameaçadas pelos de fora da tribo. É algo que está entre nós há muito tempo, e as sociedades preciso construir instituições para resistir a isso. Os que estão de fora precisam deixar de ser vistos como um perigo. Temos que pensar em como desenhar instituições e comunicação para proteger as pessoas, fazê-las perceber como os autoritários manipulam as emoções, para que possam reconhecer quando elas estiverem sendo os alvos.

Na prática, como fazer esse desenho que evitaria a manipulação?

JS – Estamos trabalhando em um projeto para tentar fazer com que as pessoas reflitam antes de compartilhar informação: “Isso mexeu comigo por quê? Por que alguém está tentando provocar esse efeito em mim?”. Outro caminho são jogos nos quais as pessoas produzem desinformação, para que entendam como isso é feito e possam reconhecer mentiras quando receberem uma. Ações de educação científica e de educação para a mídia também ajudam a pensar criticamente. É preciso pensar em regulação e, finalmente, no papel da mídia. Não só na que está claramente disseminando mentiras. Os veículos jornalísticos precisam refletir sobre o efeito de publicar histórias apenas para conquistar audiência, porque isso pode se virar contra eles próprios.

Na cobertura da primeira eleição de Trump, a mídia apenas repetiu o que ele dizia, porque “era notícia”. Ele se aproveitou dessa lógica do jornalismo para obter uma atenção desproporcional. Em certa medida a mesma coisa acontece hoje com a desinformação sobre vacinas. Um veículo publica uma matéria sobre alguém que teve uma reação alérgica a uma vacina, algo que é natural, esperado, mas o jornalista trata como algo enorme, para atrair a atenção dos leitores.

Todo repórter, todo veículo que cobre política deveria refletir sobre seus atos.

Há risco de ser tarde demais também para a mídia tradicional?

JS – Repórteres cobriram a invasão do Capitólio sobre gritos de “mentirosos” e daí para baixo. Eu vi essa mesma cobertura, e é bem claro que aquelas pessoas sentem genuinamente que estão sendo enganadas. Mas as pesquisas mostram que muitas pessoas estão preocupadas com o que é falso ou verdadeiro, e por grande margem o jornalismo profissional tem mais credibilidade que as mídias sociais. O que os veículos precisam refletir é que não adianta ter excelentes repórteres que levantam histórias muito relevantes se na mesma página vão ser publicados textos só para atrair cliques, porque isso vai confundir o público. A qualidade tem que ser a mesma em todos os textos, para manter a credibilidade intacta.

RAIO-X

Jane Suiter, 51, é cientista política, professora da Universidade de Dublin e diretora do Instituto para a Mídia e o Jornalismo do Futuro. Formada em economia e política pela mesma universidade, doutorou-se em ciência política pelo Trinity College. Em dezembro de 2020, foi premiada como pesquisador do ano do Irish Research Council.

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