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Dez anos após chuvas, serra do Rio tem ruínas e desaparecidos

TERESÓPOLIS E NOVA FRIBURGO, RJ (FOLHAPRESS) – Seu Moisés lembra quando entrou no IML (Instituto Médico Legal) e viu dezenas de corpos no chão, à espera de reconhecimento. Era impossível distinguir os rostos, desfigurados pela lama que desceu das encostas e pelo jato de água dos bombeiros.

Não conseguiu identificar a irmã, as três sobrinhas, o marido de uma delas e os dois sobrinhos-netos. “Se eles estavam lá ou foram enterrados com os outros não dá para saber, no meu subconsciente até hoje estão sumidos.”

Seus sete familiares estão entre as dezenas ou centenas de pessoas que nunca foram encontradas ou identificadas após um dos maiores desastres do Brasil: a chuva que assolou a região serrana do Rio de Janeiro na madrugada de 12 de janeiro de 2011.

Dez anos depois, o país não foi capaz de contar os mortos. Oficialmente foram 918, mas não há um número consolidado de desaparecidos. O Ministério Público estima 99 e admite não ser possível cravar, enquanto as prefeituras das três cidades mais afetadas (Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis) somam 307.

“No mês passado perdi um irmão, fui no sepultamento, botaram na gaveta. Mas uma pessoa que você não sabe onde está nem como morreu, fica esse aperto no coração, a mente atravessada”, diz Moisés Ângelo, 65, de Teresópolis.

Outra cicatriz que segue aberta são as milhares de casas em áreas de risco que foram interditadas, porém nunca demolidas. Só em Teresópolis, são mais de 1.800, segundo a Defesa Civil municipal. Tomam conta das ruínas o mato e o mofo, mas não só.

Parte dos imóveis condenados voltou a ser ocupada por quem não conseguiu moradia ou discordou das opções dadas pelo poder público. Reclamação frequente é também a invasão por traficantes, usuários de drogas e ladrões de janelas, portas e fiações. Outras têm como “inquilinos” vítimas de outras tragédias da região.

É o caso do casal Joseph Veiga, 42, e Alessandra Cardoso, 37, que diz nunca ter recebido auxílio pela casa que perdeu em um deslizamento de terra em 2016, em outro bairro de Teresópolis –15% dos imóveis não demolidos estão ocupados, segundo a prefeitura.

“A gente tem medo porque é muita água que desce quando chove, mas entre o risco daqui e a rua, é melhor aqui”, diz o ambulante. Eles chegaram a dormir uma noite embaixo de uma ponte, mas Alessandra, que tem epilepsia, se desesperou ao ver um rato passar por cima do companheiro.

Viveram então quatro meses em uma van emprestada por um conhecido num matagal, cozinhando com fogo numa latinha de refrigerante, até que souberam da casa vazia no Loteamento Feo.”Em comparação com a van, aqui é um palácio”, diz ele, hoje com fogão e geladeira doados.

Um em cada dez moradores de Teresópolis, Friburgo e Petrópolis continua vivendo em áreas de risco, segundo as prefeituras. No terceiro município, isso equivale a 12 mil famílias e 18% do território.

A despeito da estimativa de 1.800 imóveis abandonados em Teresópolis, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), responsável pelas demolições, afirma que restam destruir apenas 15. O órgão ressaltou que “possíveis gargalos pendentes” serão discutidos no encontro que ocorrerá entre domingo (10) e terça (12) entre estado e prefeituras.

O governador em exercício Cláudio Castro (PSC) transferiu a sede do governo para a região e decretou luto oficial durante os três dias. Marcou uma série de eventos e anunciou R$ 500 milhões em investimentos nas cidades.

“Tem muita gente que não está com a situação resolvida”, critica Laura Fermiano, do Movimento Popular Resgate da Cidadania Resiliência, em Teresópolis. “É inadmissível que a gente passe dez anos repetindo as mesmas coisas.”

No grupo que criou, ela trabalha para conseguir moradia para mais de 500 famílias vítimas de vários desastres na região. Ela mesma depende do auxílio-aluguel desde que sua casa foi interditada em 2011 e vive fazendo manobras para evitar invasões no imóvel até que receba a indenização e ele seja demolido. “É uma luta muito triste”, diz.

As mais de 21 mil pessoas desalojadas ou desabrigadas na tragédia tiveram basicamente três destinos: vivem do auxílio-aluguel, moram em conjuntos habitacionais construídos pelo governo estadual e federal ou receberam um valor pela casa demolida ou interditada –segundo moradores, muito abaixo do mercado.

Acostumados à vida em casa ou no bairro, muitos se recusaram a ir para os apartamentos de dois quartos do condomínio Terranova, em Nova Friburgo, por exemplo. Lá moram 1.600 famílias desalojadas de diferentes bairros, menos ou mais abastados.

“Isso gerou muito conflito. Misturaram muitas culturas e formas de vida num local só”, conta Sandro Schottz, presidente da associação de moradores de Córrego D’Antas.

Era lá que vivia o servente de pedreiro Rildo Fleimam, 59, que perdeu 12 parentes e se mudou para o prédio há quatro anos.

“A gente tem que agradecer pelo que tem, pelo menos não estamos debaixo da lama ou das pedras, mas já deu muita briga porque cada um pensa de um jeito”, diz sua esposa, a doméstica Vanilda dos Santos, 58.

Cláudia Renata Ramos, presidente da Comissão das Vítimas das Tragédias da Região Serrana, fala que os transtornos são frequentes. “Onde moro [Conjunto Habitacional da Posse, em Petrópolis] alagou tudo nas últimas chuvas. É o mesmo descaso todo ano. Não tem dragagem de rio e contenção de encosta suficiente.”

Procurado, o governo estadual respondeu que foi aplicado mais de R$ 1 bilhão nas cidades atingidas, sendo entregues 4.219 imóveis, reconstruídas 24 pontes e concluídas 93 obras de contenções de encostas.

O estado afirma que entregará mais um conjunto habitacional em Areal e que há sete obras de drenagem e contenção em andamento.

A Defesa Civil estadual cita a instalação de sirenes e pluviômetros, a elaboração de planos de contingência e mapeamentos de áreas de risco, atividades de conscientização e a capacitação de 3.000 voluntários para atuar em desastres.

As prefeituras das três cidades também apontaram avanços após a tragédia. Petrópolis destacou a construção de muros de gabião (pedras em gaiolas de aço) e o alargamento do rio Santo Antônio.

Teresópolis ressaltou a existência de um centro de monitoramento que identifica com antecedência a ameaça de chuvas e faz alertas.

Nova Friburgo afirmou que reestruturou a Defesa Civil, um convênio de estudos técnicos com o Japão, palestras sobre prevenção nas áreas de risco e criou pontos de apoio e abrigos temporários.

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