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Pandemia turbina fuga das cidades e influencers vendem novo lifestyle rústico-chique

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando notou que gastava R$ 2.000 por ano em couve orgânica, Luísa Matsushita começou a repensar sua vida em São Paulo. Pouco tempo depois, em meados de 2017, a artista plástica e vocalista da banda Cansei de Ser Sexy vendeu seu apartamento de 98 metros quadrados em Higienópolis e se mudou para um pequeno barraco que ela mesmo construiu numa região cercada por ruas de terra em Garopaba, Santa Catarina.

“Um vizinho meu é um cavalo, e o outro são várias vacas, um cavalo e umas galinhas. Eu nunca imaginei que seria essa pessoa que acorda às 5h30 e vai surfar. Eu não era a sereia do mar que curtia praia. Eu sempre fui a criança que ficava dentro do quarto desenhando”, conta, numa ligação telefônica com sons de grilo e coaxar de sapos ao fundo.

Trocar o barulho dos carros da metrópole pelo zumbido dos insetos no meio do mato –ou da praia– é um sonho que passou a ser realizado por artistas e milionários de outras profissões nos últimos anos. Impulsionados pela pandemia e em busca de mais isolamento social em oposição à densidade das capitais, eles deram forma ao seu idílio no campo, seja em casas de 12 metros quadrados, como a de Matsushita, ou em mansões de quatro suítes e seis vagas na garagem que valem R$ 8 milhões em condomínios de luxo próximos a São Paulo.

“Com a pandemia, o papel da grande cidade foi ainda mais questionado”, afirma Stefano Arpassy, futurólogo da agência de tendências WGSN. Saturados da lógica da competitividade e da produtividade das metrópoles, que foi o que os atraiu num primeiro momento, devido às oportunidades de trabalho, essas pessoas agora vão em busca de uma vida mais saudável para a mente e o corpo e maior qualidade de vida, acrescenta o pesquisador.

Quem encara essa mudança são aqueles que podem exercer seus trabalhos de forma remota, como artistas e profissionais liberais, e que não dependem integralmente da dinâmica da vida na cidade grande, acrescenta Arpassy. Por não se tratar de um movimento de massas, no entanto, ele acha incorreto definir esse cenário como êxodo urbano.

Depois de oito meses de confinamento, o cantor e modelo Loïc Koutana, o L’hommestatue, alugou com o marido uma casa em Ubatuba, onde anda na orla e faz trilhas sem cruzar com nenhuma pessoa e nenhum carro. O sonho de Koutana era morar numa praia na Bahia, mas o aluguel acessível –R$ 800– e a praticidade de chegar a São Paulo por R$ 50 usando um aplicativo de caronas foram decisivos na escolha pela praia do litoral norte de São Paulo, ele conta.

“Várias pessoas falam que vão se aposentar e morar na praia, mas por que adiar os sonhos? A conexão com a natureza me fez entender que o Brasil não é só a urbanização, só a nossa bolha do centro”, afirma, acrescentando que o confinamento na cidade afetou sua arte. Desde que se mudou, em outubro, já filmou por lá dois clipes para faixas de seu primeiro disco solo, “Ser”, que será lançado neste ano, e chegou à marca de 900 mil seguidores no TikTok.

O arquiteto carioca Tiago Freire, que projetou a casa do músico Kassin e a livraria Leonardo Da Vinci, observa uma contradição neste movimento. Se muitas vezes há o romantismo de ir para o campo para desacelerar, por outro isso só é possível porque agora há mais tecnologia e as pessoas conseguem ficar mais online. Não se trata, em sua visão, de um público que quer se afastar da internet, do trabalho ou bucar um estilo de vida mais isolado.

Freire relata que a procura por casas na região serrana do Rio de Janeiro aumentou muito durante a quarentena, aquecendo o mercado, por causa da questão do espaço, de se ter uma área privada ao ar livre, do clima ameno e também pela proximidade da capital –cerca de uma hora de carro. Isso fez a segunda moradia de parte de seus clientes se tornar a principal, uma casa mais urbana, ele afirma, e o apartamento na cidade virou o lugar para onde se vai uma ou duas vezes por semana.

Esse novo morar vem acompanhado de algumas mudanças nos cômodos das casas, a exemplo da ampliação do home office, que chega a ocupar o andar inteiro de uma mansão em Campinas, no interior paulista, anunciada pela imobiliária de luxo Bossa Nova Sotheby’s.

“Costumo dizer que o escritório é onde as pessoas guardavam os livros e a bagunça das crianças. Os brinquedos foram doados, as estantes foram limpas e essas peças passaram a se tornar de fato escritórios ou o local onde as crianças vão ter as aulas pela manhã”, diz Marcello Romero, CEO da imobiliária.

A julgar pelas redes sociais desse público, é tentador pensar que a vida na fazenda é só poesia, como no caso do canal de YouTube da jovem chinesa Li Ziqi, em que ela aparece produzindo os próprios móveis com bambu e tingindo suas roupas com cascas de frutas, numa estética rústica-chique que exalta a vida campestre na província de Sichuan. Mas Matsushita, a artista plástica, conta que seu período de adaptação em Garopaba levou quase quatro anos, até que se sentisse feliz.

“A partir do momento em que a gente começa a materializar um sonho, ele acabou, né? A gente esquece o momento de adaptação. No primeiro ano fiquei muito deprimida, estava muito apática, e daí aquela pressão de ‘agora eu posso ser sustentável, construir minhas coisas’, só que eu não conhecia ninguém. Mudei sozinha, era eu e meu gato Fabinho, Fabinho e eu”, relata. Outro drama foi aprender a lidar com os mosquitos e pernilongos, ela relata, que pousam no seu cabelo e até na tinta fresca das telas que está pintando.

Segundo Ricardo Marques de Azevedo, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, a ideia romântica de uma vida bucólica no campo ainda existe, mas está enfraquecida, é algo do começo do século passado, sobretudo para os artistas na faixa entre os 25 e os 40 anos, que em geral precisam da conexão com a metrópole. “Como você vai fazer teatro, poesia, numa cidadezinha de 10 mil habitantes? Na grande cidade você vai encontrar a sua turma.”

Os criativos podem abandonar seus grupos e seus territórios urbanos por algum tempo, ele diz, mas a tendência é que voltem, devido ao magnetismo da metrópole, que funciona como ponto de encontro e de influência. Marques dá como exemplos de vivacidade a Paris do século 19 e a Nova York do pós-Primeira Guerra –“todo mundo estava lá, os artistas, as galerias, os museus, os críticos, os jornais”.

A ARTE E O MATO

Desde que foi morar em Manaus, há dois meses, o costureiro paulistano Alex Kazuo relata que o contato com as áreas verdes preservadas dentro da cidade, o pé de samaúma no seu quintal e as araras que vê passando estão influenciando seu trabalho. “Não dá para sair ao meio-dia aqui todo vestido de preto”, diz, acrescentando que a cor característica das roupas que desenha e costura não combina com o clima quente e úmido da cidade. Ele relata que seu bloqueio com tecidos coloridos e estampados está se desfazendo aos poucos, e que começou a costurar shorts e blusas de renda amarela sob encomenda.

Em 2019, o artista plástico Thiago Rocha Pitta transformou os 13 mil metros quadrados de uma antiga propriedade de sua família, nos arredores de Petrópolis, no Rio de Janeiro, num espaço expositivo ao ar livre. Ali, instalou obras que mantêm relação com a natureza e os fenômenos climáticos, difíceis de serem absorvidas por coleções particulares, como uma plataforma de madeira sob um abismo de 800 metros de altura.

O fetiche com a vida fora das cidades chegou também aos grandes museus. No ano passado, o Guggenheim de Nova York exibiu uma megamostra do arquiteto holandês Rem Koolhaas chamada “Countryside: The Future”, ou campo, o futuro. A ideia da exposição –que pôs um trator na porta do museu, em plena Quinta Avenida– era explorar os “98% do planeta ainda não ocupados por cidades”, tratando de temas como a migração de trabalhadores e a compra de terrenos para preservação ecológica

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