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Legalização leva presas por abortarem a buscar liberdade na Argentina

BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Em março de 2014, Belén (nome fictício), 25, foi levada pela mãe ao hospital Nicolás Avellaneda, em Tucumán, na Argentina. Tinha dores na barriga e não sabia da gravidez. Já no centro médico, teve um aborto espontâneo. Temendo ser penalizado, o médico que a atendeu fez uma denúncia à polícia, dizendo que a mulher havia realizado o aborto sozinha.

Belén foi condenada a oito anos de cadeia, pena muito superior à prevista antes de a legalização da prática ser aprovada pelo Congresso argentino, no fim de dezembro. Até então, quem realizasse o procedimento fora das exceções previstas na lei poderia ser condenada a penas de 1 a 4 anos de detenção. Acontece que Belén não foi acusada pela procuradoria de ter abortado ilegalmente, mas sim pelo crime de “homicídio agravado pelo vínculo” –cuja pena pode ser muito maior.

Após ter sido tratada no hospital algemada à cama, Belén foi direto para uma penitenciária, onde passou 29 meses. Seu caso, porém, acabou ganhando visibilidade nacional por conta de uma campanha de grupos feministas. A advogada Soledad Deza assumiu sua defesa e conseguiu a revisão criminal –Belén saiu da cadeia em 2017.

No ano seguinte, morreu Liliana (nome fictício), que tinha 40 anos e cumpria prisão perpétua na penitenciária de San Martín, em Buenos Aires, por ter perdido uma gravidez aos cinco meses. A acusação era a mesma de Belén: homicídio agravado pelo vínculo.

“Começamos a mapear a criminalização do aborto com a ideia de trabalhar para libertar as mulheres, especialmente as que estavam presas por abortos espontâneos, mas não achávamos muitos casos registrados. Até que o caso Belén nos abriu os olhos: tínhamos que procurar de outro jeito”, conta à reportagem a advogada Gloria Orrego-Hoyos.

Ela é professora da Universidad de San Andrés e coautora do livro “Dicen que Tuve un Bebe” (dizem que tive um bebê, ed. Siglo 21), que reúne sete histórias de mulheres condenadas ou processadas por terem interrompido uma gravidez ou por terem tido um aborto espontâneo.

“O mundo judicial ainda é muito machista na Argentina. Juízes conservadores sabiam que as penas para o aborto poderiam ser revistas em caso de uma lei descriminalizar o procedimento. Então passaram a processar essas mulheres com figuras jurídicas que preveem penas mais altas como homicídio agravado pelo vínculo ou abandono de pessoa.”

Segundo um levantamento feito pelo Cels (Centro de Estudos Legais e Sociais), a principal ONG de direitos humanos da Argentina, existem 1.538 mulheres sendo processadas por terem realizado abortos de forma clandestina ou sofrerem abortos espontâneos. Apenas 63 delas foram formalmente acusadas de realizarem um aborto. As outras estão todas respondendo por crime de homicídio agravado pelo vínculo ou abandono de pessoa.

Na cadeia, estão 30 mulheres, algumas com prisão perpétua, como é o caso de uma jovem de 34 anos presa na província de San Juan. Ou de Rosalia Reyes, em Bahía Blanca, condenada a oito anos e que foi transferida recentemente para prisão domiciliar.

Em 2018, as advogadas feministas lamentaram não ter conseguido libertar a tempo Patricia Solorza, 34, que vivia em Quilmes, distrito de classe média baixa. Ela já tinha dois filhos e foi presa em 2014. Havia realizado um aborto caseiro e abandonado o feto num descampado. Também condenada a oito anos de prisão por homicídio agravado pelo vínculo, morreu em decorrência de infecção hospitalar.

A história das mulheres presas ou condenadas por aborto na Argentina é uma série de tragédias, que geralmente afeta as de baixa renda. Os casos mais graves ocorrem no norte do país, nas províncias mais conservadoras. Até dezembro do ano passado, só era permitido abortar em caso de estupro ou de risco de morte da mulher. Ainda assim, ter acesso ao aborto nesses casos era muito difícil.

“Em muitas províncias, principalmente nas mais conservadoras, há delegados, juízes e médicos que fazem de tudo para criminalizar a mulher”, diz Orrego-Hoyos.

A maioria das denúncias, segundo o levantamento do Cels, vem das pessoas que trabalham no sistema de saúde, com medo de ser acusadas de terem praticado um aborto ilegal. A legalização do aborto até a 14ª semana de gravidez não afeta diretamente as penas dadas a mulheres condenadas por homicídio –que a princípio seguem como estão.

“Teremos dois trabalhos agora. O primeiro é pedir revisão criminal dos casos, para que passem a ser designados como aborto e não como homicídio. E, uma vez que o aborto não é mais punível no país, elas poderiam ser libertadas, pois o crime deixou de existir”, diz Orrego-Hoyos.

Mesmo apontando para os avanços da legalização, muitas ativistas feministas admitem que haverá dificuldades na implementação da lei, porque são necessárias outras medidas. “A pobreza é um problema que atravessa todas essas histórias trágicas, a falta de educação e de informação, também. Estas são questões que a lei não resolve, são necessárias outras ações.”

O levantamento do Cels lista exemplos de mulheres que tentaram esconder a gravidez até enfrentarem complicações da interrupção da gestação ou que não sabiam que estavam grávidas e ficaram sem acompanhamento, além das que tentaram abortar com técnicas perigosas.

Para a advogada Ana Correa, autora de “Somos Belén” (ed. Planeta), que conta a história da personagem que abre este texto, “a luta agora deve ser por paridade de gênero no Judiciário. O Executivo tem muitas mulheres, mas na Justiça, não, e isso tira a perspectiva de gênero dos processos e das condenações”.

Segundo ela, as mulheres continuam tendo que enfrentar os estigmas, o machismo e os maus-tratos nas delegacias e tribunais. “Há muito trabalho a ser realizado por esse lado”, afirma.

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