Últimas Notícias

Em livro, pesquisador de Harvard revela as origens psicológicas ‘esquisitas’ das nações ricas

SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Por que os povos da Europa Ocidental e seus descendentes mundo afora se tornaram os mais prósperos e poderosos da Terra? Para um pesquisador da Universidade Harvard, a resposta é: porque a cabeça deles funciona de um jeito esquisito (quando comparada com a de outros povos do planeta, pelo menos). E essa estranheza psicológica foi forjada, em grande medida, pela Igreja Católica medieval.

Colocar a tese nesses termos, sem mais explicações, talvez faça o leitor achar que esquisita mesmo é a cachola do antropólogo Joseph Henrich, professor de biologia evolutiva humana de Harvard e responsável pela hipótese. Mas Henrich passou os últimos anos reunindo uma massa gigantesca de dados empíricos para tentar corroborá-la, e o resultado é o seu mais recente livro, “The WEIRDest People in the World” (“As Pessoas Mais Esquisitas do Mundo”, ainda sem versão brasileira).

O termo “weird” (“esquisito”) não está escrito em maiúsculas por acaso, já que se trata de uma sigla. Refere-se aos povos que são, pela ordem das letras em inglês, ocidentais, com educação formal, industrializados, ricos e democráticos (western, educated, industrialized, rich e democratic). Com efeito, a classificação de certos grupos como pertencentes ao “padrão WEIRD” tem se tornado cada vez mais popular entre psicólogos sociais, economistas e outros estudiosos do comportamento humano.

Ocorre que, em experimentos feitos em laboratório e pesquisas de opinião, os seres humanos do tipo WEIRD —basicamente europeus ocidentais e seus descendentes na América do Norte e Oceania— agem e falam de uma maneira que destoa do que se vê em outras sociedades mundo afora.

Eles tendem a ser mais individualistas, menos conformistas, mais propensos a confiar em estranhos e a ter noções mais impessoais sobre o certo e o errado (quando perguntam a pessoas WEIRD se elas mentiriam no tribunal para ajudar um amigo ou parente que violou leis de trânsito, por exemplo, o normal é elas dizerem que não —exatamente o contrário do que respondem os que vivem em países “não WEIRD”).

O estilo de raciocínio WEIRD também é mais analítico, ou seja, para entender um objeto ou fenômeno complexo, tais pessoas tendem a “quebrá-lo” em partes menores e entender como cada uma contribui separadamente. Quando olham para uma paisagem, pessoas não WEIRD prestam mais atenção no pano de fundo, enquanto os WEIRD enxergam os elementos principais e dão menos peso ao conjunto.

Ao que parece, essas diferenças psicológicas médias são reais e podem ser mensuradas. A questão é saber de onde elas vêm. Henrich aposta na evolução cultural: as atitudes peculiares das pessoas WEIRD seriam resultado de séculos de mudanças na cultura ocidental, que teriam estimulado a formação de sociedades nas quais individualismo, pensamento analítico e não conformismo seriam favorecidos desde o berço. A plasticidade do cérebro humano ajudaria os que nascem nessas sociedades a “pensar como um WEIRD”.

Para que esse tipo de construção cultural acontecesse, argumenta o antropólogo, era preciso modificar primeiro a base dos comportamentos sociais humanos: a família. Realmente, outra diferença crucial entre povos WEIRD e não WEIRD é o fato de que, fora do Ocidente, os elos sociais e políticos frequentemente dependiam de alianças entre grupos familiares muito amplos, que podemos chamar de linhagens e clãs.

Nesses contextos, não é incomum que um sujeito se sinta obrigado a vingar uma ofensa contra um primo de terceiro grau; casamentos entre pessoas aparentadas são comuns ou mesmo a norma; homens ricos e poderosos têm várias mulheres (poliginia); quando o marido ou a mulher morrem, não é incomum que o cônjuge se casa com o irmão ou a irmã mais nova de quem faleceu.

Antes da ascensão do cristianismo, esses hábitos também eram comuns na Europa Ocidental, em especial entre os povos “bárbaros” que viviam fora do Império Romano. Mas, conforme a fé cristã se torna dominante entre os povos do continente, a Igreja passa a aplicar e intensificar o que Henrich chama de MFP (Programa de Casamento e Família, na sigla inglesa).

Essas novas normas de comportamento começam a barrar a poliginia e a união com concubinas e escravas sexuais. Impõem também regras cada vez mais severas contra o que a Igreja enxergava como incesto, chegando a proibir casamentos entre primos até o sexto grau, entre pessoas com parentesco por afinidade (cunhados etc.) ou relação religiosa (filhos de padrinhos ou madrinhas, por exemplo). Por fim, estabeleceu-se que os recém-casados deveriam formar uma família nuclear separada, deixando de morar com sogros ou pais.

Todas essas mudanças foram impostas por causa da moral religiosa da Igreja, diz Henrich, mas o importante foram as consequências imprevistas de tais medidas no longo prazo. Todas elas atuaram no sentido de enfraquecer os laços entre clãs e famílias estendidas que tinham predominado em solo europeu, assim como no resto do mundo.

Além disso, teriam estimulado relações sociais e econômicas que não dependiam dos laços de sangue amplos. Entre os anos 500 d.C. e 1500 d.C., conforme o MFP se consolidava, os europeus da Idade Média e do Renascimento intensificaram trocas comerciais de longa distância e formaram associações entre indivíduos sem parentesco, como as ordens religiosas (as quais, em seus monastérios, estimularam o trabalho intelectual), as guildas que reuniam artesãos especializados e as próprias universidades.

Com o passar do tempo, o processo teria virado uma bola de neve: os grupos que melhor aderiam ao novo modelo de economia dinâmica, competitiva e individualista acabavam se saindo melhor na competição internacional, estimulando outros países a copiar o mesmo modelo.

No começo do século 16, outro movimento religioso teria funcionado como uma “injeção de reforço” nesse processo: a Reforma Protestante. Ao estimular todos os fiéis a lerem a Bíblia por si sós e ao considerar a prosperidade econômica como sinal das bençãos divinas, os protestantes fizeram com que a alfabetização, a inovação científica e o capitalismo se tornassem a marca registrada dos países mais poderosos da Europa.

Henrich documenta esse processo em detalhes, com dados que vão dos níveis de casamento entre primos em dezenas de países à alfabetização de mulheres em regiões católicas e protestantes da Alemanha nos séculos 18 e 19. O enfoque nos processos de evolução cultural é um bocado bem-vindo quando se considera o quanto os fatores históricos analisados no livro ainda costumam ser atribuídos a uma suposta superioridade biológica dos europeus.

Por outro lado, o antropólogo parece atribuir uma aura quase imutável às estruturas sociais e culturais dos países não WEIRD, as quais impediriam que eles atingissem os mesmos níveis de desenvolvimento do Ocidente. Antes de reformas políticas tradicionais, seria preciso mudar a “programação interna” das nações em desenvolvimento, diz ele —sem explicar como isso seria possível. Nesse ponto, é preciso tomar cuidado para que uma hipótese instigante sobre a história humana não se torne desculpa para que o presente e o futuro continuem reproduzindo injustiças.

The WEIRDest People in the World: How the West Became Psychologically Peculiar and Particularly Prosperous

Autor Joseph Henrich

Editora Farrar, Straus and Giroux

Quanto R$ 54,90 (ebook); 706 págs.

To Top