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Com prefeita anti-isolamento, Bauru ignora fase vermelha e tem falta de leitos para Covid

BAURU, SP (FOLHAPRESS) – Principal área de comércio popular de Bauru (SP), o calçadão da rua Batista de Carvalho, no centro, ignorava a fase vermelha do Plano São Paulo na tarde de quinta-feira (4).

Numa galeria de lojas, todos os boxes estavam abertos, vendendo roupas, calçados e acessórios para celular, apesar das restrições impostas pela fase vermelha, na qual Bauru foi incluída no mês passado.

A uma quadra dali, numa loja de departamentos, vendedoras faziam o atendimento aos clientes na calçada -a reportagem comprou um bloco de notas. Um pouco mais adiante, uma moça convidava quem passava a visitar uma ótica que estava com as portas escancaradas.

A 2 km de distância, no Pronto-Socorro Central, o casal Abraão e Lúcia Helena Santos aguardava notícias do filho de 27 anos que havia sido internado às pressas na noite anterior com sintomas de Covid-19.

“Ele não conseguia nem falar. A gente fica preocupado, porque pode precisar de UTI. E a gente sabe como está a situação na cidade”, disse a mãe, professora da rede estadual.

Igualmente agoniada, a estudante de enfermagem Beatriz Zuliani da Silva aguardava informações do marido, de 24 anos. Após alguns dias com sintomas leves, ele teve uma queda abrupta de oxigenação, chegando a 88%, nível considerado alarmante.

Indignada, criticava a falta de responsabilidade de pessoas que não fazem isolamento social. “Tudo bem querer ajudar os comerciantes, mas olha o colapso da saúde no município”, disse.

A cidade de 380 mil habitantes, a 330 km de São Paulo, tem uma das situações mais graves da Covid no estado.

Ao mesmo tempo em que flerta com o colapso, vive uma disputa entre o governador João Doria (PSDB) e a prefeita Suéllen Rosim (Patriota), que pressiona por maior abertura das atividades econômicas.

“A demanda aumenta, a gente tenta abrir novos leitos ou converter os existentes. Mas é enxugar gelo”, diz Doroti Ferreira, diretora do Departamento Regional de Saúde de Bauru, vinculado ao governo do estado.

Na quinta-feira, segundo a prefeitura, a cidade tinha 59 pacientes graves da doença para 50 UTIs disponíveis no Hospital Estadual, o principal da cidade. Mais dez leitos estão sendo adaptados para atender à Covid, mas o problema não se resume às UTIs. “Hoje as enfermarias estão lotadas, coisa que a gente nunca via”, afirma Ferreira.

Mesmo nesse cenário, a prefeita defende a reabertura do comércio, com apoio dos empresários e comerciantes. Num dos principais viadutos da cidade, uma faixa do Sindicato do Comércio mostra Doria como Pinóquio e pede “Comércio Aberto Já”.

Um dos símbolos da cidade, o Noroeste, na terceira divisão do Campeonato Paulista, somou-se à pressão: nas primeiras rodadas, usará uma camisa amarela em vez da tradicional vermelha, com os dizeres “Juntos por Bauru”, em apoio à reabertura.

A prefeitura tentou duas vezes ignorar o Plano São Paulo, permitindo o funcionamento de serviços e comércio. A Câmara Municipal chegou a aprovar uma lei municipal designando bares e restaurantes serviços essenciais. Em ambos os casos, foi preciso recuar por decisões judiciais.

A prefeita também foi criticada por atitudes que tomou. Compartilhou vídeo de uma carreata em defesa da reabertura, participou de um evento com o empresário bolsonarista Luciano Hang sem usar máscara e cantou num culto da igreja evangélica que frequenta em que não havia distanciamento entre os fiéis.

Também irritou Doria ao ir a Brasília, onde tirou fotos com Jair Bolsonaro. Foi chamada pelo tucano de “negacionista” e acusada de fazer “vassalagem” ao presidente.

“Não sou negacionista, sou realista”, reagiu ela em entrevista à reportagem.

“Quem sai na rua sou eu. Quem tem de dar satisfação ao povo sou eu. Lógico que eu tenho de batalhar pelo que acho justo”, afirmou.

Justo, em sua opinião, seria um equilíbrio maior entre saúde e atividade econômica. “A gente entende as medidas de isolamento, mas não podemos ignorar um ano de pandemia.”

Também negou que esteja fazendo vista grossa para a fiscalização de estabelecimentos abertos na cidade, mas diz que é preciso compreensão com os comerciantes.

“O número de fiscais não é suficiente, mas em nenhum momento há prevaricação. Só não podemos criar no município uma situação de guerra, do fiscal sair brigando com o comerciante. O comerciante hoje se encontra exausto”, afirmou.

A decisão de brigar pela abertura das atividades econômicas, disse ela, deve-se ao fato de Bauru ser uma cidade comercial. “Não tem grandes indústrias. Restaurantes, bares, salões de beleza, são importantes”.

Por isso, faria sentido chamar essas atividades de essenciais. “O que é essencial para mim? Não é essencial, de repente, para você. Ninguém fala de fazer algo desenfreado, com festas, aglomerações. Mas fala do restaurante em ambiente controlado, de atender de uma forma limitada, começar a fazer de forma coordenada”, afirmou a prefeita, que disse lamentar estar de “mão atadas” após as decisões judiciais que impediram a reabertura.

Ela disse que segue priorizando a saúde, mas ponderando que o mais importante é aumentar o número de leitos disponíveis na cidade. Cobrou do governo de São Paulo o aumento de vagas, que, afirmou, foi prometido e não cumprido.

Também pediu a abertura do Hospital das Clínicas, hoje um prédio pronto, mas que não funciona por falta de recursos. Apenas dois andares, de forma improvisada, servem como “hospital de campanha” para a Covid.

“A gente faz a nossa parte em fechar tudo. E a parte do estado, em nos dar uma melhor assistência?”, pergunta.

Moradores ouvidos pela reportagem se dividem ao avaliar as atitudes da prefeita.

“Temos uma prefeita negacionista, então está tudo aberto, loja funcionando, festas universitárias acontecendo. Bauru virou um polo de Covid”, disse a corretora de imóveis Fernanda Santi, enquanto acompanhava o sogro no Hospital Estadual.

Dono de uma loja de roupas e acessórios militares no calçadão do centro, Luiz Aparecido Lopes disse que Doria quer quebrar o estado e parabenizou a prefeita pela coragem.

“A prefeita é ótima. Eu tiro o chapéu para ela. A briga que ela quiser comprar eu compro junto”. O movimento, disse ele, caiu mais de 70% na pandemia, mesmo com as lojas permanecendo abertas.

No bairro Presidente Geisel, mais afastado do centro, oito pessoas tomavam cerveja no Careca Bar por volta de meio-dia, despreocupadamente.

“Se depender do calça apertada lá [Doria], vamos todos morrer de fome”, disse Alexandre, que não quis dar o sobrenome, enquanto bebia em pé apoiado no balcão.

“Não é fechando um barzinho de esquina que vai resolver o problema”, afirmou ele, dono de uma oficina mecânica.

Ali perto, na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do bairro, os seis leitos disponíveis têm sido improvisados para acolher doentes de Covid enquanto não surgem vagas em UTIs do Hospital Estadual, ou em outras cidades.

Segundo uma médica, o fluxo de pacientes cresceu bastante desde o final de janeiro. Na quinta-feira (4), o movimento era intenso no local, e a recepção estava cheia.

Há exemplos de pacientes que ficam até cinco dias no local esperando transferência, usando uma estrutura que foi feita para atender a casos de menor complexidade.

Na rede particular da cidade, a situação não é muito melhor. “Descreveria esta como a pior fase até agora desde o início da pandemia”, disse Christiano de Giacomo Carneiro, diretor técnico do Hospital Beneficência Portuguesa de Bauru.

Segundo ele, há aumento no número de pacientes mais jovens e sinais de “cansaço e desgaste” de seu corpo de funcionários depois de 12 meses. “Contamos com um corpo clínico e com colaboradores comprometidos, que vêm fazendo o seu melhor”, afirmou.

Hoje, o hospital tem 60% de ocupação na UTI e 72% na enfermaria. Para as próximas semanas, ele não projeta mudança no quadro. “Penso que ficará muito parecido ao cenário de hoje.”

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