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Quem é o mestre do violão que encantou João Gilberto e dá aulas a filhos de Caetano

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “Cezinho!” João Gilberto se anuncia, magrinho, embaixo da janela do músico Cézar Mendes, em Ipanema. Aos 87 anos, João visitava pela primeira vez Cezinha, que já trocava as cordas de seu violão. Na adolescência, em Santo Amaro, na Bahia, João era o Deus pessoal do violonista, a essência emanada dos alto-falantes. Passadas algumas visitas, ele, enfim, pediu seu violão, tocou certa peça, hipnotizando Cezinha, e o entregou de volta.

“Eu só quis me amostrar”, brincou João. Dias mais tarde, ele avisaria ao amigo –“Cezinho, anote meu telefone, porque não quero mais ninguém entre mim e você”.

De janelas abertas aos amigos que se anunciam com um grito ou assobio, Cezinha completa 70 anos em 29 de março. No Rio de Janeiro, ele é o mestre de violão de filhos de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, bem como de atores interessados em sua arte. Maria Bethânia, sua conterrânea, tomou aulas num verão da Bahia. “Ela é muito musical.”

Ele avistou o violão, pela primeira vez, nas mãos de um pedreiro, em Santo Amaro. E aprenderia os primeiros acordes ao observar as aulas de um policial à sua irm㠗bom de olho, além de ouvido, absorveu tudo o que podia e convenceu a irmã a dispensar o policial, se tornando ele próprio seu professor.

Nos verões em Salvador, ele se hospeda com o casal Caetano e Paula Lavigne, e não deixa de dar aulas a quem o procure. Nas tardes baianas, ele e o compositor tiram canções de memória, como numa tarde em que lembraram os acordes de “Itapuã”, do álbum Circuladô. “Caetano conhece a minha alma. Se eu chegar de mau humor, posso me fantasiar de Arlequim, que ele me conhece.”

Caetano o incluiu no filme “O Cinema Falado”, no qual acompanha sua mãe, Dona Canô, em “Último Desejo”, de Noel Rosa. No dia da gravação, o violonista ligou em desespero para o designer tropicalista Rogério Duarte. “Calma, passe aqui. A gente vai junto. Eu estou com um baseado maravilhoso”, disse Duarte, para o tranquilizar.

“Aquele Frevo Axé”, de 1997, sua primeira composição, nasceu por pressão da produtora Paula Lavigne, mulher de Caetano. “A melodia surgiu num ônibus. Voltei no outro dia e assobiei para Caetano. Pronto. Ele fez a letra e Gal gravou no ano seguinte.”

O maestro Jaques Morelenbaum, arranjador de canções do instrumentista, elogia a sua musicalidade. “O violão de Cézar Mendes é doce e nos faz bem. Isso porque as mãos que o tocam são de um compositor que ama seu ofício, se dedica noite e dia ao mesmo, e tem a rara habilidade de atingir o profundo da alma com gestos simples”, diz Morelenbaum. “Isso o faz um genuíno compositor popular de extrema qualidade. E sua brasilidade é absolutamente natural e flagrante.”

Da banda dos Tribalistas, Cezinha teve em Marisa Monte a produtora de seu único disco, “Depois Enfim”, de 2018, com participações de Djavan, Carminho, Arnaldo Antunes, António Zambujo, entre outros. A atriz Fernanda Montenegro canta “Aquele Frevo Axé”.

“Foi Paula Lavigne quem trouxe Cézar Mendes, nosso amado Cezinha, para o meu convívio. Para o nosso convívio”, lembra ela. Um dia, no sítio de sua filha, Fernanda Torres, a atriz bateu na porta de Cezinha. “Vamos, meu filho, vamos cantar lá embaixo”, convocou a atriz, abraçada a songbooks. “Por Causa de Você”, de Tom Jobim e Dolores Duran, a fez chorar.

“Cezinha é um referencial absoluto do grande somatório musical, lírico, que a Bahia culturalmente sempre nos dá. Cézar Mendes é um criador inspirado, um compositor inesgotável. E, acima de tudo, como sua respiração, existe o violão. O violão é o seu corpo e sua alma. Nessa dimensão de comunhão, no nosso cancioneiro, ele é único”, diz Fernanda Montenegro.

O violonista não sabe definir seu estilo. “A música para mim é orgânica. Aos dez, 12 anos, os meninos gostavam de bola, de correr picula. Eu não tinha o menor saco. Meu negócio era ficar com o violão na mão”, conta Cezinha. “Eu era muito tímido. O violão foi uma maravilha, namorei por causa dele, fiz amizades. Não consigo ficar sem violão na mão.”

Amigo e professor ciumento, Cezinha reclama de ausências, se queixa dos faltosos a terceiros e ameaça romper relações quando um aluno passa mais de um mês sem dar as caras. “Já jubilei vários”, ele sorri. Dentre muitos, não esconde qual é o seu xodó. “Tom [Veloso] é quase meu filho. Tom escreve e faz melodias bem. É o aluno com quem eu divido melodia. Só o Tom. E ele bota letra.” São parceiros em “Talvez” e “Um Só Lugar”. O mestre elege Bem Gil como o melhor aluno que já teve.

“Passei a conviver semanalmente com Cézar em função das aulas de violão que ele me dava, mas percebendo que sua musicalidade estava intimamente ligada ao seu estilo de vida logo me tornei seu discípulo”, afirma o músico filho de Gil.

“Em Cézar Mendes ainda vivem a economia de Caymmi e a sofisticação de João Gilberto, e tive o privilégio de estar próximo a ele justamente quando sua veia compositora se mostrou aberta. Um músico não erudito mas que é sinônimo de clássico por tudo aquilo que produz. Um grande amor, uma lenda viva, verdadeiro patrimônio musical brasileiro.”

A naturalidade talvez seja a técnica mais evidente do professor. “Eu procuro saber o que o aluno conhece de música, qual a canção popular que ele curte. Pouco importa que sejam poucas notas. Se você bota teorias, os alunos acham um saco.”

Enquanto conversamos, ele dedilha sem parar o violão, e, assim, esta reportagem ganha uma música de fundo.

“Os 70 anos não mudam nada. Só muda a quantidade de vezes que você vai ao banheiro. Acordo todos os dias tranquilo, às vezes meio tonto, por causa do Parkinson. Não tenho inimigos. Não tenho pensamentos negativos.”

Mais um acorde. “Dá pra pedir à Nana Caymmi para gravar uma música minha?”

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