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Atuação do Judiciário gera abre-fecha de escolas e igrejas e fura fila por vaga de UTI

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em meio à ausência de uma liderança nacional, o Judiciário tem interferido de forma generalizada no combate à pandemia de coronavírus, dificultando a adoção de políticas pelos governos estaduais e municipais.

Se essa atuação permite, por um lado, um exame mais criterioso sobre possíveis arbitrariedades, por outro lado tem trazido instabilidade, gerando um abre e fecha de atividades como escolas e igrejas e interferindo no dia a dia da gestão da saúde em um momento crítico da pandemia.

O Brasil fechou neste domingo (4) a pior semana da pandemia, 19.231 mortos em sete dias, totalizando 331.530 óbitos pela Covid.

Desde que a doença começou a circular no país, o Judiciário já decidiu sobre o funcionamento de comércio, escolas e igrejas, a liberação de rodovias, a destinação de seringas, a vacinação e a fila de pacientes de UTIs, entre outros temas.

Na atuação controversa mais recente, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Kassio Nunes Marques liberou no sábado (3) a realização de cultos presenciais sob o argumento de preservação da liberdade religiosa.

A decisão foi criticada tanto no conteúdo, por ir contra medida de preservação da vida, como na forma, por ter sido proferida na véspera de um dia tradicional de celebrações religiosas, o domingo de Páscoa, e de forma monocrática, o que gera instabilidade, uma vez que pode ser facilmente contestada por outro colega de tribunal.

Foi o que aconteceu nesta segunda-feira (5), quando o ministro Gilmar Mendes vetou os cultos presenciais em São Paulo.

Também nesta segunda-feira, a Justiça suspendeu a reabertura das escolas no Rio de Janeiro, como já ocorreu em outros lugares. Em São Paulo, por exemplo, as aulas presenciais já foram suspensas por uma liminar, depois liberadas pelo presidente do tribunal, depois inviabilizadas por outra decisão que impedia a convocação de professores, que por sua vez foi derrubada de novo.

O vaivém não afeta somente pais, colégios e diretores. Diariamente, gestores de saúde têm que conciliar políticas de assistência com decisões sobre casos individuais, como a destinação de leitos.

Em live recente com integrantes do Judiciário, o secretário da Saúde de Goiás, Ismael Alexandrino, relatou caso ocorrido no estado.

Dois pacientes precisavam de um leito de terapia intensiva na rede pública. Um estava em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) com boa saturação e conseguiu uma vaga no hospital de Campanha de Rio Verde, mas a família não quis. Buscou na Justiça o atendimento em Goiânia e conseguiu.

O segundo, em situação muito mais crítica, precisava de um leito solicitado minutos antes, mas ficou sem vaga. Morreu no início da noite.

Decisões como essa, que mudam a ordem da fila de atendimento, têm sido comuns em todo o país, afirma Carlos Lula, presidente do Conass, o conselho estadual dos secretários de Saúde, assim como as que barram medidas sanitárias definidas pelos governos locais.

“O Judiciário pode adotar políticas erradas, que não estejam em conformidade com o ordenamento jurídico, mas ele em si não é executor da política pública”, afirma.

“A consequência desse tipo de coisa é o que já aconteceu ontem, cultos abarrotados. Quantas pessoas vão adoecer e morrer em decorrência disso?”

A judicialização da saúde não é novidade em um país em que o Judiciário há muitos anos decide diariamente sobre a compra de medicamentos e a cobertura de planos de saúde, mas é alimentada no momento pela ausência de uma coordenação nacional de combate à pandemia, avaliam especialistas.

“A atuação do governo federal no sentido de praticamente propor uma política de descontrole da pandemia faz com que cada um dos 27 governadores possa tomar decisões distintas sobre temas centrais. Quando eles discordam, é inevitável que o Judiciário seja chamado”, afirma Wallace Corbo, professor da FGV Direito no Rio.

Além de acionar as instâncias superiores, a omissão do governo federal também enfraquece as decisões locais, uma vez que elas ficam pulverizadas, incentivando o Judiciário a interferir.

Nesse sentido, ainda que ele critique a decisão de Nunes tanto pelo conteúdo como pela forma, ele avalia que ela pode ter um efeito positivo ao gerar uma uniformização do entendimento sobre o tema, já que será apreciada pelo plenário do Supremo nesta semana.

Professora da Faculdade de Direito da USP, Maria Paula Dallari Bucci também avalia que o STF tomou decisões importantes ao longo da pandemia, como a que assegurou a estados a prerrogativa de tomar medidas contra a Covid, enquanto o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) incentivava e promovia aglomerações, na contramão das recomendações das autoridades de saúde.

Para ela, a decisão de Nunes destoa da atuação do tribunal até o momento ao ir contra a preservação da vida. “Se tem muita gente vulnerável que vai ter o contágio facilitado, quem a decisão do Supremo está favorecendo”, questiona.

Também em sua avaliação a atuação do governo federal tem impulsionado a interferência do Judiciário.

Ela cita a questão dos cultos e das escolas como pontos que poderiam ser mediados pela comissão intergestores do SUS se houvesse alguma iniciativa federal de coordenação.

Professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, Fernando Aith vê o cenário nacional como um caos alimentado por Bolsonaro, não só pela omissão, mas também pela proatividade.

“É um presidente que incentiva a desobediência civil contra as normas de medidas sanitárias”, afirma.

Embora veja exemplos positivos da atuação do Judiciário, ele avalia que o poder tem atuado como mais um elemento de instabilidade, contribuindo para um cenário de cada um por si ao proferir uma série de decisões sem uniformidade.

“O Judiciário deveria ser muito parcimonioso para tomar qualquer decisão que não seja a já tomada pela União, estado ou município”, diz.

“Questões como a definição de leitos de UTI dialogam com um problema de judicialização mais antigo, que já existia e está ficando mais visível uma vez que lidamos com uma pandemia.”

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