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Sombra de China e Rússia paira sobre reunião do G7 com os EUA aliados outra vez

BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) – Bucho de ovelha recheado com uma mousse de vísceras, cebola e farinha de aveia está no menu de nove dos principais líderes globais neste final de semana, num castelo do século 18 às margens do Atlântico, na Cornualha (sudoeste inglês). Mas no prato principal da reunião do G7, que começa nesta sexta (11), o que estará mais presente são justamente as duas potências ausentes: China e Rússia.

O primeiro encontro presencial desde 2019 vai reunir Joe Biden (EUA), Yoshihide Suga (Japão), Angela Merkel (Alemanha), Emmanuel Macron (França), Boris Johnson (Reino Unido), Mario Draghi (Itália) e Justin Trudeau (Canadá). Somados, os PIBs desses sete países são 45% do total mundial, nas estimativas para este ano do FMI (Fundo Monetário Internacional). São US$ 42,43 trilhões (cerca de R$ 214,85 trilhões), quase 30 vezes o tamanho da economia brasileira.

O que distingue o grupo não é o porte das contas nacionais, já que uma seleção das maiores economias do mundo teria que necessariamente escalar a China (2º lugar em termos nominais e 1ª quando se usa um cálculo que permite comparar países, chamado ppp) e a Índia (5º em termos nominais e 3ª em ppp).

O G7, em sua própria definição, é um fórum de potências que defendem “valores” que os ausentes não professam: democracia liberal, direitos humanos, desenvolvimento sustentável e liberdade de expressão.

Como “guardi㔠desses valores, a União Europeia também participa da cúpula. Nessa 47ª reunião ela será representada por Charles Michel e Ursula von der Leyen, presidentes do Conselho Europeu (que reúne os líderes dos 27 membros da UE) e da Comissão Europeia (Poder Executivo do bloco), respectivamente.

No hotel do castelo Tregenna, entre chá com creme e sobremesas de erva-abacaxi e aipo, eles têm seis temas centrais —recuperação econômica, resiliência, política externa, saúde, democracia e ambiente—, mas conflitos paralelos como o brexit dificilmente ficarão de fora das salas com vista para a baía de Carbis, de areia cor de palha e águas mansas.

Já a turbulência das conversas deve estar mais próxima do logotipo do 47º G7, que empilha sete linhas onduladas, cada uma com vários tons de azul: há interesses comuns, mas também divergências entre os principais líderes. Ao documento final chegarão apenas as convergências, expressas em compromissos práticos. Apesar da amplitude da pauta, os resultados do G7 não são imediatamente esquecidos, indica uma análise da Universidade de Toronto. Da reunião —virtual— do ano passado, por exemplo, resultaram 26 compromissos prioritários, que foram 95% cumpridos na média.

CHINA

A influência crescente da potência asiática é preocupação central não só de Japão, Europa e América do Norte, mas de ao menos três dos quatro convidados para o evento: Austrália, Índia e Coreia do Sul.

Os EUA e a UE divergem na abordagem da China e devem tentar persuadir os aliados durante a cúpula. Biden defende mais distanciamento e independência, enquanto a Europa adota uma relação ambígua, na qual o governo chinês é visto como concorrente e inimigo sistêmico mas também como parceiro.

Não por acaso, a China é mencionada várias vezes em artigo sobre a viagem à Europa publicado por Biden no Washington Post. O presidente americano pede uma aliança entre países democráticos para combater “as ameaças e os adversários modernos”.

A UE se aproximou da China até como reflexo dos atritos com o ex-presidente Donald Trump, e no final do ano passado firmou com o país asiático um acordo de investimento, criticado por fazer vistas grossas ao péssimo retrospecto chinês em relação aos direitos humanos. O acordo acabou sendo suspenso após novas denúncias de repressão da China contra a minoria muçulmana dos uigures.

Os europeus temem virar joguete de uma nova guerra fria entre os EUA e a China e vão defender no G7 que é possível fazer frente ao autoritarismo chinês e ao mesmo tempo trabalhar em conjunto em áreas como proteção do clima. Por outro lado, os europeus devem propor investimentos conjuntos em infraestrutura, principalmente em países subdesenvolvidos, para frear o avanço da Nova Rota da Seda, projeto bilionário chinês que visa conectar o leste asiático a Europa, África e América Latina.

Outro ponto de acordo deve ser um plano comum para reforçar a produção de semicondutores, reduzindo a dependência dos produtos chineses.

RÚSSIA

Biden quer dar no G7 uma demonstração pública de solidariedade aos europeus em relação a agressões russas antes de seu primeiro encontro com Vladimir Putin, em Genebra, na quarta (16).

Depois de uma reunião preparatória em maio, os chanceleres do G7 disseram estar “profundamente preocupados” com “o padrão negativo do comportamento irresponsável e desestabilizador da Rússia”.

Charles Michel subiu um tom e afirmou que o governo do presidente Vladimir Putin patrocina “atividades ilegais, provocativas e perturbadoras” e é preciso fortalecer os países vizinhos e a sociedade civil russa.

Biden já chamou Putin de assassino —pela repressão ao opositor Alexei Navalni— e criticou abertamente a intervenção da Rússia em eleições americanas. No G7, deve testar com os aliados alguns dos pontos que pretende tratar com o russo no encontro bilateral, todos eles de interesse da Europa, como a escalada de tensão entre Rússia e Ucrânia, o controle de armas nucleares, ataques cibernéticos e mudança climática, além da repressão contra Navalni e do apoio ao ditador de Belarus, Aleksandr Lukachenko.

DEMOCRACIA LIBERAL

“A América está de volta, para unir as democracias do mundo”, disse Biden pouco antes de embarcar para a Europa no avião presidencial Air Force One, na quarta (9). Rússia e a escalada repressiva de Lukachenko entram neste bloco, mas a China também tem lugar de destaque, pelas “contínuas violações de direitos humanos” no Tibete e em Xinjiang, pela repressão em Hong Kong, por suspeitas de espionagem e desinformação e por investidas econômicas consideradas desleais.

Segundo analistas, a estratégia de Biden é reforçar, com evidências práticas, que a democracia funciona e é um sistema melhor que o capitalismo estatal e centralizado da China. Os europeus no G7 certamente concordam, mas a UE ainda se vê com problemas em seu próprio território: ataques ao Estado de Direito são registrados pela Comissão em países como Hungria, Bulgária, Polônia e Estônia, entre outros.

Em discurso antes do G7, Charles Michel também defendeu uma estratégia ativa: “Não devemos simplesmente suportar os choques, os ataques e os golpes de quem não gosta desse modelo baseado em liberdade, emancipação e não discriminação”.

RECONCILIAÇÃO

Mais que uma participação no G7, a visita de Biden é uma mensagem para seus aliados do outro lado do Atlântico. Reino Unido e Europa são o primeiro destino de uma viagem internacional do líder americano desde que tomou posse, algo que aconteceu pela última vez no governo de Jimmy Carter (1977 a 1981)

Na agenda de Biden estão várias reuniões para discutir política, economia e defesa com os aliados europeus, começando pelo encontro com Boris nesta quinta. Reuniões a dois com os outros membros do G7 acontecem no sábado (12), e ele tem um encontro com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, na segunda (14). O americano também visitará a rainha Elizabeth 2ª no palácio de Windsor no domingo.

Os interlocutores do velho continente não escondem o alívio com a distensão da relação transatlântica, abalada na gestão Trump. Nas palavras de um negociador da UE que participa das reuniões preparatórias do G7, “o que se vê é uma ótima atmosfera, de reengajamento entre parceiros e aliados”.

A maior parte das divergências entre os EUA e o bloco europeu devem ficar para a cúpula com a União Europeia —que não ocorria desde 2014—, no dia 15. Biden fará pressão, por exemplo, para barrar o oleoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha e está praticamente concluído.

A UE, por sua vez, está frustrada com a manutenção por Biden de medidas de guerra comercial impostas por Trump, como tarifas sobre aço e alumínio. “Os EUA precisam fazer aquilo que pregam”, disse na quarta (9) o comissário de Comércio da UE, Valdis Dombrovskis.

ALIANÇA MILITAR

O tema já tem foro próprio —a cúpula da Otan, aliança militar entre países europeus e norte-americanos, a partir de segunda, 14)—, mas o G7 será boa oportunidade para que Biden reate compromissos abalados por Trump, que ameaçou sair da aliança e, em termos grosseiros, chamou a Alemanha de caloteira. Será o primeiro encontro de cúpula da organização desde 2018.

PANDEMIAS

Menos crítico que no ano passado, mas ainda central, o combate ao coronavírus é outro assunto que deve ter a China na berlinda, em vários aspectos. Os membros do G7 estão cientes de que o país asiático ganhou espaço na diplomacia da vacina, principalmente em países pobres, e querem reverter esse jogo acelerando a produção e melhorando a distribuição de imunizantes e elevando a doação de fármacos.

Os EUA anunciaram o fornecimento de 500 milhões de doses da Pfizer para 92 países até o fim de 2022 —o Brasil não está incluso—, o Reino Unido tem um plano de doar 1 bilhão de doses, e a UEa, outras 100 milhões, além de um novo investimento de 2,8 bilhões de euros no Covax, que distribui imunizantes.

Em carta ao G7, mais de 200 ex-líderes mundiais e chanceleres pediram aos líderes do grupo que se responsabilizem por dois terços dos recursos necessários para vacinar os países pobres —estimados em cerca de R$ 332 bilhões.

A Europa deve também apoiar o pedido americano de nova investigação independente sobre a origem do Sars-Cov-2, ponto sensível para o governo chinês, que recusa a hipótese de que o coronavírus tenha saído de um de seus laboratórios. “É preciso ter acesso total aos locais e informações”, afirmou nesta quinta Von der Leyen. Segundo ela, saber como o coronavírus se tornou capaz de infectar humanos é crucial para corrigir falhas e prevenir crises no futuro.

​MUDANÇA CLIMÁTICA

Ambiente é assunto obrigatório num ano em que o Reino Unido sedia uma das mais importantes reuniões multilaterais sobre clima, a COP 26. Esse é um dos motivos pelos quais o governo britânico deve relutar em assumir, no comunicado final do G7, críticas mais duras à China —a adesão dos chineses às ações contra a mudança climática é considerada essencial.

Biden, por sua vez, quer passar a borracha sobre a política de terra arrasada de Trump, que chamava o aquecimento global de farsa inventada pela China e retirou os EUA do Acordo do Clima de Paris. O novo presidente americano recolocou o país no tratado assim que tomou posse, tem se apresentado como líder global do combate ao aquecimento e comandou em abril uma cúpula virtual de ação climática.

O tema é uma das três prioridades desta gestão da Comissão Europeia, que deve tentar atrair aliados para seu plano de fundos que ajudem países mais pobres a fazer a transição para uma economia mais verde.

Nesta quinta, 70 executivos de algumas das maiores empresas do mundo publicaram uma carta aos líderes do G7 pedindo “ações mais ousadas” para cumprir a meta de chegar a 2050 com emissões líquidas zero de gases de efeito estufa.

TRIBUTAÇÃO

Ministros das finanças do G7 já concordaram com um regime tributário global mais rígido para multinacionais, e avanços ou retrocessos nesse tema só devem ocorrer nas reuniões do G20 —há divergências sobre como os recursos seriam divididos entre nações mais e menos ricas— e da OCDE, que trabalha em proposta multilateral.

A PAZ IRLANDESA

Boris gostaria de deixar discussões sobre o brexit fora do G7, mas elas devem acontecer não só no encontro com Biden mas também em encontros bilaterais durante a cúpula mais ampla, devido ao impasse entre Reino Unido e União Europeia em relação às checagens nas fronteiras irlandesas.

Para evitar uma checagem entre a Irlanda (que faz parte da UE) e a Irlanda do Norte (que integra o Reino Unido), o acordo do brexit prevê que os britânicos façam o controle aduaneiro na passagem pelo mar da Irlanda, o que Boris diz ser inviável. Um dos indícios de que o britânico espera questionamentos durante o G7 é a convocação de seu ministro do brexit, David Frost, para participar de reuniões na Cornualha.

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