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Entenda por que Tiago Iorc virou meme com música sobre masculinidade tóxica

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É com o peitoral branco à mostra e o quadril rebolando em uma calça pantalona vermelha que Tiago Iorc surge no videoclipe de “Masculinidade”, lançado há pouco.

Nele, desfia críticas ao machismo e desabafa sobre o vício em pornografia e os abusos que cometeu, as lágrimas que causou. “Ser homem exige muito mais do que coragem/ Muito mais do que masculinidade/ Ser homem exige escolha”, afirma na canção, de mais de seis minutos.

“Essa música nasceu de um processo muito pessoal, um sentimento íntimo que me trouxe, naturalmente, bastante insegurança. Enquanto escrevia, dividi-o com pessoas próximas e percebi que, ao compartilhar minha história, elas se sentiam mais confortáveis para se abrir também. Isso me incentivou a pôr esse trabalho no mundo”, relata o cantor, em nota.

O videoclipe alia uma câmera bem articulada a uma performance corporal dramática, e marca o retorno do cantor aos holofotes após meses de hiato, contabilizando mais de 1,6 milhões de visualizações em menos de um mês.

Apesar da alta audiência, o lançamento não foi totalmente positivo para o cantor dos sucessos “Coisa Linda” e “Amei Te Ver”. Iorc virou motivo de chacota pela postura de “homem consciente” -também conhecido como “desconstruído”- e inspirou memes que zombam não só dele, como de outros famosos que empunham bandeiras contra estereótipos de gênero.

Isso porque usar vestidos, saias e pantalonas, pintar as unhas e admitir que já foi abusivo não são as atitudes que melhor demonstram o desejo de lutar contra o machismo, tampouco comprovam o reconhecimento de privilégios masculinos. Pelo menos é o que pensam algumas feministas incomodadas com “Masculinidade”.

Questionado sobre as críticas, Iorc diz que “são muitas opiniões, e todas válidas”. “Podemos aprender com todas elas. A minha é apenas mais uma voz nesse debate que já vem acontecendo há tempos.”

“Certamente o Tiago Iorc sofre com a masculinidade. Todos sofremos. Mas a música é um espetáculo do ‘eu’ e trata a masculinidade apenas como um efeito colateral, como se nela não existisse um algoz”, afirma Manuela Xavier, especialista em psicanálise e influenciadora digital. “Mesmo quando ele admite que já foi covarde e abusivo, não vemos uma responsabilização, ou reconhecimento dos benefícios que tirou disso tudo. É como se ele fosse a vítima.”

Para Xavier, a letra mostra ainda que o artista falhou na proposta e reforçou o que diz querer combater. “Em um dos versos, ele fala que teve medo do seu feminino. Mas o que seria esse feminino? Ser sensível e emotivo? Isso é exatamente um estereótipo”, diz ela.

Discussões sobre construção, expressão e identidade de gênero permeiam as ciências humanas há décadas. Mas as gerações Y e Z, que compreendem indivíduos nascidos entre as décadas de 1980 e 2000, têm exercitado isso de novas formas. Isso porque eles dizem preferir as próprias individualidades a caixinhas de “masculino” e “feminino”, indo na contramão de conceitos como o de meninos terem de se vestir de azul e meninas, de rosa.

Um estudo da WGSN, empresa especializada em tendências de comportamento e de consumo, mostra que é cada vez mais comum lojas não atribuírem gênero aos serviços e produtos que oferecem, sejam eles roupas, brinquedos, eletrodomésticos, tratamentos de beleza e outros.

É um sinal de que a luta contra aos estereótipos de gênero se torna cada vez mais rentável e que há um mercado atento a essas narrativas.

Professora e especialista em crítica cultural, Júlia dos Anjos Costa afirma que a lógica do capitalismo é transformar tudo em produto, incluindo ideologias e lutas sociais.

“Não acredito em interesse genuíno de grandes marcas. Tem muita empresa lucrando com ‘pink money'”, diz Costa –o termo se refere à venda de produtos pensados para o público LGBTQIA+. “A palavra ’empoderamento’ está cada vez mais vazia. É como se comprar uma camisa fosse fazer alguém empoderado.”

Ainda assim, a massificação de pautas até então restritas a nichos pode ser benéfica, defende Costa. Nesse sentido, o que Tiago Iorc está fazendo agora com “Masculinidade” não deixaria de ser relevante.

O escritor João Silvério Trevisan, que neste ano lançou uma nova edição de seu livro “Seis Balas Num Buraco Só – A Crise do Masculino”, concorda que a canção de Iorc tem apelo popular. Mas, opina, a sua tentativa de repensar o masculino se mostra “absolutamente insuficiente”.

“A impressão que fica é a de que ele saiu da terapia e quer dar um conselho, quase como uma autoajuda”, diz Trevisan. “Mas o videoclipe tem suas complexidades para além do texto. É bem bonito. Muita gente está fazendo o que o Iorc fez, e as maiores abordagens que encontrei vieram de feministas. Isso precisa continuar.”

Para Trevisan, é precipitado afirmar que o músico deseja apenas se autopromover, esvaziar a causa feminista ou se promover sexualmente ao construir uma imagem de bom moço na tela, como sugerem algumas críticas.

Ainda assim, não é incomum se deparar com o arquétipo do homem progressista galanteador que se camufla sob discursos revolucionários para seduzir mulheres e, muitas vezes, agredi-las de alguma maneira.

Um dos maiores memes da figura do “esquerdo-macho” -os machistas de esquerda- é o personagem de Emilio Dantas em “Todas as Mulheres do Mundo”, série do Globoplay inspirada no filme homônimo de Domingos de Oliveira. Com um discurso libertário, ele seduz dezenas de mulheres e faz juras de amor eterno a cada uma delas.

Para Manuela Cantuária, colunista de humor da Folha que fez piada com o clipe de Iorc em um texto recente, o cantor representa um novo tipo de esquerdo-macho. “[A letra de ‘Masculinidade’ tem] um discurso muito bonito, mas a gente precisa começar a olhar para a prática. Às vezes, é melhor ter humildade e assumir que não se está tentando mudar do que se colocar como alguém que entendeu tudo sobre o assunto.”

Cantuária diz ver em músicos como Iorc, Fiuk -participante do Big Brother Brasil deste ano que chegou a fazer aulas de feminismo para não fazer feio no programa e viralizou ao chamar Carla Diaz de “branca privilegiada”- e o britânico Harry Styles, que estampou a capa de uma edição da Vogue de vestido, um contraste a ser analisado com cuidado, sem demonização e valorização excessiva.

“É legal, válido e importante”, diz ela. “Mas é preciso ir além do discurso e do lucro. Queremos agentes realmente transformadores.”

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