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Famílias e profissionais de saúde lembram com dor e revolta falta de oxigênio em Manaus

MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – Relembrar o final de 2020 e início de 2021, quando o sistema de saúde do Amazonas colapsou pela segunda vez, reativa dores que o advogado e juiz aposentado Francisco Balieiro acredita que nunca serão superadas.

A expectativa dele era virar a página das consequências da primeira onda da Covid em sua vida: passou quatro dias internado em abril de 2020, perdeu o irmão, cunhada e amigos no mesmo período e conviveu com as sequelas da doença o ano inteiro.

“Já tinha feridas não cicatrizadas. E a segunda onda pegou nossa família de forma brutal e violenta”, conta.

A filha de 27 anos foi infectada e entre a internação e a morte foram apenas cinco dias. Baleiro a enterrou no dia 21 de dezembro de 2020. “Ela não tinha comorbidade. Era gordinha, mas não tinha problemas de saúde por ser mais gordinha.”

No dia 5 de janeiro de 2021, perdeu um sobrinho e, no dia 8, um tio para a Covid. Uma semana depois, em 12 de janeiro, outro irmão faleceu em decorrência do coronavírus.

“Naqueles dias já havia queixas de falta de oxigênio em Manaus”, lembra.

A correria e a ansiedade continuaram. No mesmo dia, a mãe do advogado apresentou sintomas. A família percorreu onze unidades hospitalares tentando atendimento.

“Não havia vaga nem pública nem particular. Onde tinha vaga, não tinha oxigênio”, recorda.

O exame de Covid da idosa havia dado negativo, mas, como ela morava com o irmão do advogado que morreu com a doença e era do grupo de risco, a família decidiu levá-la para São Paulo, onde a infecção pelo coronavírus foi então confirmada.

“Se tivesse ficado em Manaus, teria morrido”, afirma Balieiro.

Enquanto a família se desdobrava com as dores e o tratamento da matriarca fora do estado, o cunhado de Balieiro, também infectado, teve uma piora na doença e não conseguia vaga para se internar.

“No enterro do meu irmão, que morreu dia 12, só podiam entrar duas pessoas. Tem uma foto minha sozinho no enterro que foi feita pelo meu cunhado. Naquele dia, ele já estava com a doença e não sabia. O Maguila tinha 44 anos”, conta.

O cunhado ficou dias internado em uma UPA e, por meio de uma decisão judicial, a família conseguiu uma vaga para ele em um hospital. Cerca de um mês depois, ele também morreu.

“Não tem como dizer que superou. Tem dias que vem lembranças da minha filha, outra hora é do meu irmão, do meu tio, depois do Maguila. Às vezes, estou no carro e fico muito ruim e choro. Quem não sofreu essa angústia, essa dor não faz ideia. Você procura forças para reviver e voltar a uma vida normal”, diz, chorando.

Francisco Balieiro afirma que sua ansiedade agora é pela vacinação da filha de oito anos. “Ela nasceu prematura, um quilo e cem gramas. Não sei nem o que seria capaz de fazer para ver minha filha vacinada.”

O advogado critica a postura do governo em relação à pandemia e à vacinação de crianças.

“É inacreditável que, depois de tudo que este país passou, o presidente da República continue fazendo gracinha com a pandemia. Eu sou cristão. Não há incompatibilidade entre Deus e ciência, há entre Deus e esse cara aí [Bolsonaro]”, diz.

Um ano após o colapso do sistema de saúde de Manaus, o funcionário público José Augusto Silva da Costa, 66, convive com as sequelas que deixaram limitações musculares nas pernas dele e com a revolta pelos que morreram por falta de leito e oxigênio.

Costa sobreviveu à doença porque foi transferido para outro estado quando o Amazonas colapsou. Lembra que ficou internado dois dias numa cadeira de rodas no corredor de uma unidade de pronto atendimento em Manaus, com falta de ar e fraqueza, até a transferência para Natal.

“Vi duas pessoas morrerem ao meu lado [em Manaus]. Vi se debaterem com falta de ar. Pensei que ia morrer também. Oro de joelhos agradecendo por ter conseguido sair daqui. Muitos não tiveram a mesma sorte”, lamenta.

“Meu sentimento é de revolta, de raiva. É inadmissível faltar oxigênio. Tinha aqui na Venezuela. Por que não trouxeram antes de faltar? Esses caras trazendo cloroquina para cá. Brincaram com a vida do povo. Esse governador foi irresponsável e o presidente mais ainda.”

Do outro lado do balcão, um médico da linha de frente, que pediu para não ter o nome divulgado, conta que chora e se questiona quando lembra das decisões que teve de tomar com outros profissionais para escolher quem ia ficar sem oxigênio nos intervalos de desabastecimento.

Os pacientes que eles consideravam com maior condição de sobreviver eram privilegiados com o oxigênio quando os níveis eram críticos. Assim, os primeiros a morrer, quando faltava o insumo, eram os da UTI, segundo ele. Mas a falta também atingiu quem não conseguiu acesso a um leito intensivo, acrescenta.

Entre outros momentos, recorda que uma gerente técnica se jogou no chão e começou a chorar depois que os doentes selecionados para ficar sem oxigênio, em razão da escassez, morreram. Diz ter na memória também um idoso que, já muito mal e sem oxigênio, contava a ele estar vendo Jesus.

Para o médico, situações inesquecíveis como essas levaram muitos colegas a adoecer no período após o colapso da saúde em Manaus.

Glenda Nascimento de Freitas, enfermeira e diretora da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) José Rodrigues, recorda que a unidade que ela gerencia tem capacidade para 19 pacientes internados, mas tinha 56 no dia em que faltou oxigênio.

“Só de lembrar já quero chorar. Foi um desespero. Fiquei quatro dias sem dormir. Do dia 14 ao dia 18. Tenho crise de ansiedade até hoje. A gente corria para conseguir oxigênio para duas, três horas e depois corria de novo”, conta.

Ela diz que o terror começou quando, na manhã do dia 14, uma unidade do bairro Alvorada acusou a falta de oxigênio e de resposta da empresa fornecedora do insumo. Ela fez um cálculo e percebeu que o da unidade dela acabaria às 19h.

Assim, ela e a equipe começaram a reavaliar pacientes para altas e transferências. Ao meio-dia, porém, os hospitais pararam de receber os doentes transferidos porque estavam com o mesmo problema que a UPA.

No final daquela manhã, o marido de Freitas, que não é funcionário do estado, foi para uma enorme fila de uma empresa que vendia cilindros avulsos. Médicos da unidade fizeram vaquinha e conseguiram o recurso. A vez dele, no entanto, não chegou antes das 19h.

Neste dia 14, segundo a enfermeira, ocorreu “um milagre”: uma pessoa –que até hoje ela não sabe quem é– parou na frente da unidade e doou oxigênio suficiente até as 21h. O doador havia visto o apelo nas redes sociais.

Na fila de uma empresa, conseguiram oxigênio até as 2h da madrugada. E assim passaram os quatro dias seguintes, com oferta intermitente do insumo.

Em uma das vezes em que o oxigênio estava chegando ao fim, conseguiram 16 cilindros, mas precisavam de um caminhão para trazê-los até a UPA. O irmão de um paciente a ouviu comentar o problema e ofereceu o seu veículo. O irmão dele estava intubado na unidade.

“Ele vinha no caminhão dirigindo o mais rápido que podia, chorando e rezando alto: ‘Senhor, sustenta meu irmão mais uns minutos’. Eu, ao lado, não aguentei e chorei também. Ficaram uns minutos sem oxigênio. O irmão dele foi um dos que sobreviveram”, diz.

“Quando faltava [oxigênio], as pessoas morriam. Principalmente as que estavam intubadas, dependentes 100% de oxigênio. A equipe ia ambuzar [usar o ambu, reanimador manual], tentava acalmar. Dizia que o oxigênio estava chegando. Algumas conseguiam controlar a mente. Outras, infelizmente não. Do dia 14 para o dia 15, perdemos cerca de 15 pessoas”, lembra.

No dia 14, o jornal Folha de S.Paulo publicou reportagem na qual a empresa White Martins afirmava que a solução mais viável era trazer oxigênio da planta da companhia na Venezuela, devido à distância e à logística envolvida. Três dias depois, o governo de Nicolás Maduro anunciou uma doação.

A chegada, por estrada, a Manaus da doação do governo da Venezuela, no dia 20 janeiro, deu fôlego ao sistema, mas, segundo dados do relatório da CPI da Covid, a instabilidade perdurou até fevereiro.

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