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Fomos postos num fogo cruzado, diz brasileiro que deixou Bolshoi com a guerra

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na tarde desta quarta, o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro fazia um dos últimos ensaios para a estreia de “O Lago dos Cisnes”, de 1877, composto por Piotr Ilitch Tchaikóvski e coreografado por Marius Petipa.

Nas coxias, era preciso desviar de braços, pernas, troncos, corpos, que no chão se alongavam à espera da entrada em cena. Durante a pausa, o bailarino David Motta Soares, de 25 anos, desceu do palco e, passos lentos, moveu seu 1,83 metro de altura até a última fileira da plateia, onde se acomodou numa das poltronas.

Há pouco mais de dois meses, Soares anunciou nas redes sociais que abandonava o sonho de qualquer profissional da dança, o cargo de solista líder do Bolshoi, o balé mais famoso do mundo, que fica em Moscou. Outros brasileiros que trabalhavam no país, como Victor Caixeta, ex-Mariinsky, e Evandro Bossle, ex-Stanislávski, também decidiram pôr as carreiras em suspenso, num gesto contra a Guerra da Ucrânia e em solidariedade aos colegas do país atacado pelas tropas russas.

“Nós, artistas estrangeiros na Rússia, fomos colocados em um fogo cruzado, porque nos pediam para fazer oposição à guerra, mas trabalhávamos para uma companhia estatal e não podíamos falar nada”, ele diz, com leve sotaque russo.

Soares conta que ninguém do Bolshoi esperava a guerra e que a notícia da invasão da Ucrânia pegou os bailarinos –e o mundo– de surpresa. Assim, no início de março, ele separou algumas malas e, já quase sem opções de voos internacionais, comprou uma passagem só de ida para Istambul. Não sabendo para onde ir, ele aceitou a sugestão de um amigo italiano de passar um tempo com sua família em Milão.

“Lembro que, quando a guerra estourou, Moscou ficou num silêncio mortal, em parte porque ninguém comentava sobre o que estava acontecendo. Todo mundo parecia congelado”, ele lembra.

Na Itália, Soares teve de conciliar a dor de sair de um país onde morava sozinho desde os 12 anos de idade e as negociações com companhias estrangeiras, ávidas pelos talentos dos principais teatros russos. O bailarino revela, porém, que sua decisão de se juntar ao Balé Estadual de Berlim, na Alemanha, para onde acabou indo, era urdida há algum tempo —e só foi acelerada pela guerra.

“Considerando o lado profissional, eu não sairia do Bolshoi, porque você olha para o lado e se depara com os melhores professores e coreógrafos do mundo todo. Mas, no lado pessoal, já sentia falta de um aconchego familiar. Vivi todo esse tempo sozinho. Minha família me visitava muito pouco na Rússia”, afirma.

Depois de alcançar um dos postos mais altos no Bolshoi, Soares pôde escolher aonde iria. Em Berlim, assumiu o cargo de solista principal para realizar o antigo desejo de se aventurar nos repertórios de dança moderna e contemporânea, aproveitando sua formação clássica. Até o momento, ele só tem algumas impressões da capital alemã, porque lá ficou só uma semana, no início de abril.

Ao mesmo tempo em que aprecia ter se mudado para um país livre, ele tem certo receio da liberdade. Perguntado sobre o tempo livre em Moscou, Soares ri. Não tinha vida social e trabalhava todos os dias de dez da manhã às dez da noite. Ele diz que a vida agitada de Berlim pode atrapalhar o desempenho em cena.

Na Alemanha, Soares recebeu uma ligação da primeira-bailarina do Municipal do Rio de Janeiro, Claudia Mota. Ela o convidava para ser seu parceiro em cena, na última montagem de “O Lago dos Cisnes” de sua carreira.

Desse modo, Soares viverá, pela primeira vez, Siegfried, jovem que se apaixona por Odette —princesa interpretada por Mota—, aprisionada no corpo de um cisne pelo feiticeiro Von Rothbart. Encenado em quatros atos, o balé, que estreou justamente no Bolshoi, terá, agora no Municipal, a regência de Tobias Volksmann. Acostumado com montagens que seguem rigorosamente a coreografia de Marius Petipa, Soares atuará em récitas com a adaptação de Jorge Teixeira e a direção geral de Hélio Bejani.

Mesmo se dizendo feliz de estar feliz no Rio de Janeiro, onde dançou pela primeira vez em 2018, ele se incomoda com o tratamento dado à dança no país e cobra apoio do público e das autoridades para melhorar a infraestrutura do Municipal.

“É uma casa maravilhosa, mas é uma pena um teatro assim, sem funcionar. O corpo de baile, por exemplo, ficou dois anos sem dançar. Agora, reaberto, o balé vai dançar dois espetáculos na temporada. É pouquíssimo”, afirma. “Por que tem pouco bailarino no Municipal? Porque todo mundo sai do país. Os brasileiros adoram assistir aos balés estrangeiros, mas esquecem que há companhias aqui.”

Ele não rechaça a possibilidade de encerrar a carreira no teatro, mas diz que a estrutura teria de mudar bastante. “Não podemos pular em um chão de madeira assim, não dá para dançar sem amortecedor. Para que a gente possa levar essa emoção, é preciso ter boas salas de ensaio, camarins apropriados, fisioterapeutas até durante o espetáculo.”

Em novembro do ano passado, reportagem deste jornal revelou a precariedade das dependências do Municipal. Para os bailarinos, dançar no palco é sinônimo de risco de lesões, pela ausência do chamado “sprung floor” —uma espécie de amortecedor. Até hoje, o piso não foi instalado. Na ocasião, a presidente do Municipal, Clara Paulino, afirmou que processos de licitação estavam em andamento para reparar a estrutura do prédio.

Enquanto isso, Soares parece relutar em dizer que está aproveitando a passagem pelo Rio. Diz ter vindo para dançar. No máximo, vai à praia aos fins de semana. Da Rússia, recebe mensagens dos amigos do Bolshoi que relatam o prosseguimento da temporada. “A vida continua.”

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‘O LAGO DOS CISNES’ COM A ORQUESTRA SINFÔNICA DO THEATRO MUNICIPAL

Quando: 14/5, 18/5, 19/5, 20/5, 21/5, 24/5, 25/5 e 26/5, às 19h; 15/5 e 22/5, às 17h

Onde: Theatro Municipal do Rio de Janeiro – praça Floriano, s/n, Centro

Preço: R$ 20 a R$ 80

Elenco: Cláudia Mota e David Motta Soares (14 e 20/5); Márcia Jaqueline e Cícero Gomes (15, 19, 21 e 25/5); Juliana Valadão e Filipe Moreira (18, 24 e 26/5)

Link: https://theatromunicipalrj.eleventickets.com/#!/home

Regência Tobias Volkmann

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