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Ignorância e fracasso são fundamentais para sucesso na ciência, diz neurocientista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O neurocientista Stuart Firestein há muito tempo sustenta uma ideia contraintuitiva: a de que a ignorância e o fracasso são fundamentais para o progresso científico.

E não é que fale isso da boca para fora. Em 2006, ele criou um curso chamado “Ignorância” na Universidade Columbia (EUA), onde dá aulas de neurociência. Em 2012, lançou um livro com o mesmo nome (publicado no Brasil em 2019 pela Companhia das Letras).

Numa época em que políticos populistas procuram minar a credibilidade da ciência, contudo, convém fazer uma ressalva. “O nome do curso é apenas para ser provocativo. Não se trata de estupidez, de indiferença aos fatos”, diz Firestein.

A proposta, ele explica, é mostrar quais são as grandes questões que os cientistas tentam responder, apresentando mais as dúvidas e as incertezas e menos os fatos e os dados. “Porque não vamos conseguir os dados que queremos se não fizermos a pergunta certa”, afirma.

Firestein defende mudanças na maneira como se ensina ciência ao longo de toda a educação formal, da escola à faculdade, onde, segundo ele, ainda prevalece uma visão determinista típica do século 19.

Ele também argumenta que é necessário melhor a comunicação científica com o público, tema que passou a pesquisar em parceria com a cientista brasileira Natália Pasternak.

Os dois farão a conferência de abertura da temporada 2022 do Fronteiras do Pensamento, com apresentações dia 8 de agosto em São Paulo, 10 de agosto em Porto Alegre e a partir de 19 de agosto online.

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PERGUNTA – Como o sr. chegou à ideia de que é a ignorância, não o conhecimento, que impulsiona a ciência?

STUART FIRESTEIN – Foi a partir de meu papel duplo na Universidade Columbia. Eu percebi que, no laboratório de neurociência, achava muito empolgante interagir com estudantes de pós-graduação e pesquisadores de pós-doutorado, assim como pensar nos experimentos e nas grandes questões que estávamos levantando.

Mas também sou professor de um curso de graduação em que se usa um livro-texto com mais de 3 kg, ou seja, mais de duas vezes o peso do cérebro humano. E eu comecei a pensar que, ao longo das 23 aulas, os estudantes imaginavam que tudo o que eles precisavam saber sobre o cérebro estava naquele livro e nos fatos que eu ficava citando. Mas é longe de ser esse o caso.

Além disso, eu senti que os alunos achavam que tudo que um cientista faz é produzir todos esses fatos para reuni-los num livro-texto e depois forçar os estudantes a memorizá-los antes da prova. Mas também não é esse o caso.

Quando eu me encontro com outros cientistas, a gente não fala sobre o que a gente sabe. A gente fala sobre as grandes questões e sobre como vamos atacá-las.

Quando percebi essa desconexão entre a forma como a ciência é percebida e a forma como a ciência é perseguida, pensei: “O que estamos ensinando aos estudantes?”. Não estamos ensinando o que há de empolgante na ciência. E então pensei que deveríamos ensinar as coisas que a gente não sabe, porque é disso que a ciência trata.

O nome do curso, “ignorância”, é apenas para ser provocativo. Não se trata de estupidez, de indiferença aos fatos. A ideia é, com a colaboração de outros professores da faculdade, mostrar em que eles estão trabalhando, quais são as grandes questões de suas áreas, por que escolhem estas e não aquelas questões etc.

P – Se a ciência fosse percebida da maneira que o sr. diz que ela é perseguida, que diferença faria?

SF – Ela seria muito mais acessível para o público geral, um público que talvez sinta que a ciência é uma montanha invencível de fatos e dados. É claro que, para ser um cientista, é preciso aprender um monte de coisa. Mas também é preciso aprender um monte de coisa para se tornar um advogado, um encanador, um músico.

Só que não é preciso ser um músico profissional para curtir uma sinfonia ou um show. Então por que precisaria com a ciência? Por que as pessoas não podem curtir a fabulosa aventura da ciência? Todo mundo gosta de um quebra-cabeça, de uma questão em aberto.

P – O sr. diz em seu livro que é um erro dar tanta ênfase aos resultados na ciência. Por causa da pandemia, porém, as pessoas estavam mais ansiosas do que nunca para saber resultados de pesquisas sobre vacinas, sobre o coronavírus etc. Seria possível ser diferente?

SF – Não tenho nada contra fatos e dados. Só estou procurando um equilíbrio melhor na maneira como pensamos na ciência. Afinal, no laboratório, a gente examina os fatos com muito cuidado, mas, em muitos casos, a parte mais importante é o enquadramento de uma determinada questão. Porque não vamos conseguir os dados que queremos se não fizermos a pergunta certa.

Então uma coisa que pode funcionar melhor na comunicação com o público é mostrar não só o que sabemos mas também o que não sabemos e o que estamos tentando descobrir.

E a pandemia deixou o processo científico bem evidente, porque pesquisadores das mais diferentes áreas pararam o que estavam fazendo para tentar contribuir. Houve compartilhamento de dados como nunca tínhamos visto, e em muitos casos com dados incompatíveis entre si.

Mas é assim que a ciência avança, e não como nas narrativas históricas em que um gênio após o outro faz as grandes descobertas. Erros são cometidos, cientistas entram em becos sem saída; mas as falhas são muito importantes para o sucesso.

P – Uma grande parte dessa colaboração na pandemia ocorreu por meio das redes sociais. Como o sr. vê essa atuação de cientistas?

SF – Comunicação com o público é fundamental. Ciência trancada no laboratório é ciência perdida para a sociedade. Mas todos os cientistas devem se envolver na comunicação com o público? Provavelmente não. Não há por que imaginar que um bom cientista necessariamente também seja bom em fazer palestras, escrever ou dar aulas, por exemplo.

P – Como lidar com pessoas que distorcem o papel da dúvida na ciência, fazendo dela não uma etapa do processo de achar respostas, mas um suposto sinal de fraqueza?

SF – Essa é uma questão complicada, e é claro que não existe uma resposta simples. Mas eu acho que passa pela educação científica que damos às pessoas. Nós continuamos a ensinar uma visão determinista da ciência típica do século 19. E isso desde a escola até a faculdade. Continuamos a ensinar fatos e fórmulas, mas não ensinamos incerteza.

Quando uma pessoa termina sua educação formal, a experiência que ela tem com a ciência é que existem respostas certas e erradas na prova. Então, quando um cientista diz que não está certo acerca de um assunto, ou que existem diferentes opiniões, essa pessoa acha que aquilo não é ciência, porque ela nunca aprendeu que incerteza faz parte do processo.

P – A inteligência artificial poderia ajudar a mudar a maneira como ciência é ensinada?

SF – Seria de esperar que a inteligência artificial ao menos tire a pressão dos fatos. Google e Wikipédia em parte já fazem isso. Qualquer coisa que leve a abandonar a ideia de que temos de manter um monte de fatos na cabeça pode ajudar a melhorar a educação, se usado de forma adequada.

Uma coisa que me preocupa com a educação é que existem boas propostas de reforma desde um século atrás, mas nada acontece. E por quê? Eu acho que um dos maiores obstáculos é a avaliação. Precisamos ser capazes de avaliar tanto o estudante como o curso que ele faz.

Só que ainda usamos os mesmos instrumentos de sempre, como testes padronizados. É o que eu chamo de modelo bulímico de ensino: enfiamos um monte de fatos goela abaixo do estudante, ele vomita tudo num teste e avança para o próximo ano, sem nenhum ganho apreciável por fazer tudo certo.

A inteligência artificial poderia oferecer uma solução ao sugerir maneiras de avaliar os estudantes de forma individualizada. Hoje nós sabemos que as pessoas não aprendem as coisas no mesmo ritmo. Uma pessoa pode avançar mais rápido em matemática do que em redação nos níveis básicos, por exemplo, e depois inverter nos níveis intermediários ou avançados.

Então por que todos os alunos de cada série têm a mesma idade? Bem, porque é mais fácil do ponto de vista administrativo, mas esse é um péssimo motivo.

P – Qual seria a alternativa?

SF – Eu penso em jogos de videogame. O jogador precisa coletar certos pontos para passar de fase. Um jogador pode ir muito rápido da fase 1 a 5 e depois empacar na 6. Outro pode começar devagar, mas, depois que pega o jeito, passa de fase com muita facilidade. É uma maneira individual de evoluir no jogo, e a educação poderia aprender algo com isso.

P – Para entrar no espírito de seu livro, nos últimos dez anos, qual foi a coisa mais interessante que o sr. aprendeu que não sabe sobre a ignorância? SF – Essa é interessante (risos). Eu diria que uma coisa que eu aprendi depois sobre a ignorância diz respeito às coisas que nem sabemos que não sabemos. Como chegamos a essas coisas? Esse é um tipo de ignorância profunda.

Então eu comecei a pensar sobre o assunto e, em parte por isso, escrevi o livro “Failure” [fracasso, sem tradução em português, publicado em 2015]: é por meio do fracasso que chegamos a essas coisas. Ou seja, devemos não só abraçar a ignorância mas também o fracasso, porque o fracasso nos mostra coisas que nem sabíamos que não sabíamos.

Você faz um experimento esperando um certo resultado, mas o experimento falha ou tem um resultado que você não entende. Bem, agora você precisa pensar tudo de novo e elaborar novos experimentos para entender o que aconteceu. Grandes descobertas se deram dessa forma.

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RAIO-X

STUART FIRESTEIN

Ex-presidente do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Columbia (EUA), onde pesquisa o olfato, dá aulas de neurociência e coordena um curso sobre ignorância. É autor de “Ignorância – Como Ela Impulsiona a Ciência” (Companhia das Letras, 2019) e “Failure – Why Science Is So Successful” (fracasso – porque a ciência é tão bem-sucedida, ainda sem edição no Brasil). Antes de iniciar sua carreira científica aos 40 anos, trabalhou no teatro por quase duas décadas.

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