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‘Persuasão’ com Dakota Johnson faz obra de Jane Austen perder o brilho

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sabemos que o cinema pode se beneficiar do diálogo com outras artes, como vemos na adaptação mais recente de um dos principais romances de Jane Austen, “Emma”, dirigida por Autumn de Wilde e estrelada por Anya Taylor-Joy.

Não foi o caso de “Persuasão”, nova adaptação de Austen e uma produção original da Netflix. O filme, dirigido por Carrie Cracknell, com longa experiência no teatro britânico, é uma obra fraca, com decisões ruins, que se distancia muito da qualidade do material original.

Enquanto “Emma”, romance anterior de Austen, é uma comédia que aposta na sátira social, “Persuasão”, publicado em 1818, depois de sua morte precoce aos 41 anos, é um romance bastante melancólico, e suas protagonistas têm características bem distintas. O livro teria sido escrito quando a autora já estava em condição delicada de saúde.

Claro, ainda estamos no universo de Austen. Portanto, o humor, a ironia fina que é marca de sua escrita, continua presente. Mas “Persuasão” está longe de ser uma história irreverente.

A protagonista, Anne Elliot, passou os últimos oito anos sofrendo por ter feito uma escolha equivocada –órfã de mãe, filha de um pai narcisista, foi persuadida por Lady Russell, amiga que tem como figura materna, a desistir do casamento com Frederick Wentworth porque ele não era um homem rico e Anne não tinha a bênção da família.

Embora as histórias de Austen sejam, em geral, lidas como romances açucarados –entre os quais “Orgulho e Preconceito”, de 1813, ocupa lugar de destaque–, a crítica acabou reconhecendo seu valor literário, identificando outros elementos fundamentais nelas, ainda escanteados.

Observadora perspicaz da vida em sociedade na transição do século 18 para o 19, ela registrou literariamente o momento histórico em que a Inglaterra via o conflito entre os valores da aristocracia e a ascensão da burguesia.

Em uma sociedade de castas, o enriquecimento legítimo se dava por herança ou pelo casamento. Por isso, Austen sempre tratou do tema também como a “transação comercial” que ele de fato era. Quando Lady Russell desencoraja Anne a seguir em frente, não estava sendo uma mulher mesquinha e preconceituosa de forma isolada: a exceção seria romper com essa regra, casando-se com um homem aquém de sua posição social e econômica.

A forma passiva com que Anne reage –foi persuadida, expressão conveniente, que de certo modo a desimplica da escolha– é um dos principais motivos pelos quais Wentworth se decepciona e desiste de lutar por ela. Então ele se retira de cena, tornando-se um marinheiro bem-sucedido, mais tarde alçado ao posto de capitão. Retorna como homem rico e admirado, apresentando uma mobilidade social que para alguns, como o pai de Anne, ainda era malvista.

As adaptações de Austen para o cinema e para a televisão são tão numerosas e variadas que mereceriam um texto à parte. Algumas buscam recriar a atmosfera e o contexto histórico das obras literárias originais. Outras acrescentam elementos anacrônicos propositadamente, como a acertada aposta na diversidade do elenco –na esteira da série “Bridgerton”–, ou transportam o enredo para outra época.

Das mais fiéis às iconoclastas, a verdade é que Austen tem um séquito, uma legião de fãs, que vai sempre tratar a obra de partida –o texto literário original– como objeto sagrado, gabarito de aferição para avaliar a obra de chegada –a adaptação audiovisual–, não importa quantas vezes a crítica tente defender a autonomia da segunda em relação à primeira.

Ismail Xavier, um dos nossos principais críticos cinematográficos, tem um artigo preciso sobre adaptações em que diz que o texto deve ser tomado sempre como ponto de partida, e não como estação de chegada.

No caso de “Persuasão”, no entanto, é inevitável pensar que o brilhantismo de Austen não está lá e que, como obra autônoma, a versão da Netflix também decepciona quem busca um bom filme, desapontando tanto leitores quanto espectadores.

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