Últimas Notícias

Manuscritos inéditos mostram que carta de 1977 pela democracia teve ao menos 12 versões

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Inspiração de um dos manifestos em defesa da democracia que serão lidos no dia 11 de agosto na Faculdade de Direito da USP, a “Carta aos Brasileiros”, de 1977, passou por pelo menos 12 versões até chegar à redação final, num processo que indica a obsessão de seu autor pela forma e pelo conteúdo.

O professor Goffredo da Silva Telles Jr. (1915-2009), responsável por escrever e ler o documento, sabia que estava diante de uma oportunidade ímpar de vocalizar críticas contra a ditadura militar.

A provocação partira de Almino Affonso, José Carlos Dias e Flávio Bierrenbach. Formados em direito na USP, onde Goffredo lecionava, estavam inconformados com a direção dada às comemorações pelos 150 anos da fundação dos cursos jurídicos no país.

Num gesto de desafio, organizaram um evento alternativo, no qual seria feito um discurso em favor das liberdades, da democracia e do Estado de Direito.

O orador ideal seria Goffredo, que nem pestanejou quando os três amigos lhe fizeram o convite durante um almoço no restaurante Circolo Italiano, no centro de São Paulo.

Como Goffredo contaria anos depois, ele se lançou por inteiro e com toda sinceridade à missão. Em suas palavras: “Aquela obra, por nós idealizada, eu me comprometia a elaborar, com todas as veras do meu ser”.

De acordo com a advogada Maria Eugenia Raposo da Silva Telles, que tinha se casado com Goffredo dez anos antes, aquele almoço -do qual ela também participou– ocorreu em abril.

De lá até 8 de agosto, quando a carta foi lida, realizaram-se diversas reuniões para discutir o conteúdo do manifesto e outras tantas para acertar sua forma, mas a maior parte da tarefa Goffredo executou sozinho.

“Houve momentos em que ele não fazia outra coisa no tempo livre. Acordava às 4h e ficava até as 9h cuidando do texto. Se a gente viajava para a praia em finais de semana ou feriados, ele se isolava nesse trabalho”, diz Maria Eugenia, 81.

“Era como uma corrida de obstáculos, uma ginástica. Ele podia escrever 10, 20 vezes a mesma página até achar o ritmo, a frase, a palavra perfeita”, relembra a advogada formada na USP em 1964.

Seus arquivos não a deixam mentir. Pastas organizadas pelo próprio Goffredo guardam os manuscritos e as páginas datilografadas com as versões provisórias da “Carta aos Brasileiros”.

Eles mostram que sempre estiveram lá algumas noções importantes, como a discussão sobre a fonte de legitimidade do governo e sobre a competência para mudar a Constituição. Também sempre estiveram lá frases retóricas, como “Ninguém se iluda”, mas não o fecho “Estado de Direito Já!”.

O título também evoluiu. Começou como “Pronunciamento dos cultores do direito, ao se comemorar o sesquicentenário dos cursos jurídicos no Brasil”.

Depois virou “Carta aos Brasileiros em homenagem ao sesquicentenário dos cursos jurídicos no Brasil” e assim permaneceu até a penúltima versão -quando alguém, não se sabe quem, teve o bom senso de preservar só as três palavras iniciais.

Desse processo participaram pelo menos sete pessoas, além de Goffredo: Almino Affonso, André Franco Montoro, Cantídio Salvador Filardi, Flávio Bierrenbach, José Carlos Dias, José Gregori e Maria Eugenia.

Bierrenbach, hoje com 82 anos e ministro aposentado do Superior Tribunal Militar, diz que o grupo contribuiu pouco.

“Nas reuniões, Goffredo lia, nós dávamos um pequeno palpite e não sabíamos se ele ia aceitar ou recusar, mas geralmente acolhia”, afirma Bierrenbach. “Quem mais interferiu na redação da carta foi a Maria Eugenia. Ela não vai confirmar, mas é a impressão que me ficou.”

Ela de fato não confirma. É certo, porém, que foi a primeira ouvinte de cada uma das versões e de suas respectivas mudanças, que eram muitas, e sem dúvida deu sua opinião sobre elas.

Goffredo costumava ler em voz alta o que tinha acabado de escrever, ainda que fosse uma mísera alteração. Queria ouvir as palavras, saber como soavam; mantinha o dicionário por perto para procurar sinônimos até se dar por satisfeito.

Essa obsessão ele aprendeu com o homem de quem herdou nome e sobrenome. Goffredo da Silva Telles, o pai, foi um poeta aclamado pela Academia Paulista de Letras que, segundo o filho, mostrava a diferença entre usar uma palavra e usar a palavra certa.

O filho absorveu a lição, porque marcações aparecem em todas as versões da “Carta aos Brasileiros”, inclusive naquelas que, em fins de junho, pareciam as definitivas.

Usando uma Mont Blanc tinteiro que teve por quase toda a vida, ele rasurava passagens e acrescentava ideias até chegar ao ponto de alguém datilografar o novo texto -seu primeiro emprego após a faculdade foi de datilógrafo, mas ele não gostava da máquina de escrever.

Em seguida, retomava a rotina até que todos os envolvidos no processo se dessem por satisfeitos.

O resultado entrou para a história, a ponto de a atual “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito” referir-se logo no começo ao trabalho de Goffredo. O manifesto atual, que é suprapartidário e prega o respeito ao resultado das eleições, já tem mais de 750 mil signatários.

To Top