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Artistas abandonam em peso a Bienal do Mercosul e se voltam contra a organização

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Faltando menos de um mês para a abertura da 13ª Bienal do Mercosul, um grupo de artistas que participaria da tradicional mostra de arte contemporânea em Porto Alegre protagoniza uma debandada da lista de convidados.

Entre pedidos de desligamento e exclusão de nomes, a organização da mostra sofre para se adequar ao orçamento e entregar todos os dez espaços expositivos até 15 de setembro, sobretudo diante da impossibilidade de ocupar a Usina do Gasômetro. Do lado dos artistas, há um sentimento de insatisfação com a curadoria de Marcello Dantas.

Até o momento, foram captados para o evento cerca de R$ 9,69 milhões, o equivalente a 80% do total arrecadado via Pró-Cultura, lei de incentivo do governo do estado do Rio Grande do Sul, Lei Rouanet e doações diretas. Em 24 de maio, a Bienal anunciou o tema da edição -“Trauma, Sonho e Fuga”-, apresentando também uma lista com 93 participantes, de 20 países. Outros seis artistas foram incluídos na mostra, mas a lista sofreu baixas e motivou algumas polêmicas.

Em 15 de junho, a dupla Silêncio Coletivo, formado por Jaime Lauriano e Igor Vidor, decidiu se retirar da exposição. Num email enviado à curadoria, os artistas relataram ser impossível montar a instalação “Do Pó ao Pó” com R$ 20 mil. Eles argumentaram que, numa conversa com Dantas, haviam acertado verba bem maior, entre R$ 70 mil e R$ 90 mil. A obra empilha sacas de café, açúcar e cartuchos de munição, numa alegoria ao comércio colonialista.

Dantas nega que tenha acertado um valor que fosse quase quatro vezes maior para a participação dos artistas. Ele diz ter visitado o ateliê da dupla no Porto, onde recebeu o pedido de que a obra fosse incluída na Bienal do Mercosul. “Não havia razão para um custo de quase R$ 90 mil, não gastaria dinheiro público dessa forma”, rebate. Ele afirma ainda que Lauriano e Vidor se atrasaram no cronograma e não apresentaram nenhum projeto à curadoria até maio, quando seus nomes foram anunciados.

“Eu já estava incomodado com o fato de o Jaime ser irmão da Carollina Lauriano, então decidi que não deveria cruzar mais essa linha”, diz, falando sobre a curadora-adjunta da mostra.

Dantas confirma que a organização da mostra tem dificuldades para se ater ao orçamento previsto porque, durante o trabalho de curadoria, o custo para frete de obras de arte quadruplicou, e o preço das passagens aéreas também aumentou muito. Segundo ele, é normal que haja problemas com orçamento e saída de artistas num evento tão grande.

Entre os funcionários da Bienal do Mercosul, porém, o clima é de perplexidade com a desorganização da mostra. Eles observam algumas mudanças no perfil da fundação, que hoje tem equipes mais enxutas e menos recursos para a montagem, e relatam uma queda de braço entre Dantas e o departamento financeiro.

No dia 4 de julho, 14 artistas receberam um email da produção sendo desconvidados do evento. Na justificativa, a produção afirmava que os projetos haviam ultrapassado os limites orçamentários. No dia seguinte, todos os profissionais que receberam a carta foram “reconvidados” pela produção, que se desculpou, dizendo que Dantas faria ajustes para readequar as propostas à realidade financeira.

Naquele mês, a situação havia se agravado, porque a Bienal do Mercosul soube que não poderia fazer uso da Usina do Gasômetro como espaço expositivo. De acordo com Dantas, 12 artistas fariam obras para o local, que está fechado há cinco anos para reformas. A organização da mostra apostou no espaço, acreditando que a prefeitura da capital gaúcha entregaria o espaço reformado no prazo estipulado à época -fevereiro deste ano.

Só que as obras no prédio foram paralisadas em outubro do ano passado, devido à necessidade de readequar o contrato entre a prefeitura e a empresa responsável pelo projeto. Após as mudanças, os trabalhos foram retomados em julho deste ano, quando a curadoria da Bienal do Mercosul já havia embarcado no imbróglio envolvendo o prédio, atrasando o seu próprio cronograma. Com a retomada, as obras ficaram 44% mais caras do que o valor previsto -R$ 16,5 milhões em comparação a R$ 11,4 milhões.

A nova Usina do Gasômetro deve ficar pronta em abril do ano que vem. Em nota, a Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura de Porto Alegre afirmou que a reforma está sendo acompanhada por uma equipe técnica e que, fazendo os aditivos, o cumprimento do prazo será viável.

“As obras ficaram mais caras porque havia muitos erros no projeto que, inclusive, é investigado por uma sindicância para apurar responsabilidades, que corre em sigilo”, diz a nota. “Todos esses erros de projeto fizeram com que o ritmo da execução da obra fosse menor do que o previsto. Em dado momento, chegou a ficar sem frente de obra. Esses fatos ensejaram uma profunda análise e melhorias no projeto para que fosse possível executar e dar funcionalidade àquele prédio.”

Sem o Gasômetro, a mostra deslocou os trabalhos artísticos para o Cais Mauá, Casa de Cultura Mario Quintana, Instituto Ling e Paço Municipal. Os funcionários temem que os espaços não fiquem prontos a tempo.

Em nota, Carmen Ferrão, presidente da Bienal do Mercosul, apresenta uma versão diferente da curadoria. Ela afirma que não ocorreu nenhum problema orçamentário, tampouco no cronograma. “É um processo natural de um evento deste porte, algumas mudanças de rotas em função da mudança nos espaços expositivos, viabilidade de produção, alteração na agenda de artistas ou outras questões técnicas.”

Ferrão afirmou que a aposta no Gasômetro se deu após a prefeitura, hoje comandada por Sebastião Melo, do MDB, assegurar que o espaço ficaria pronto até o início da exposição. Ela afirma que todos os locais estarão prontos para a abertura.

Claudia Melli, que faria uma intervenção pictórica nas janelas do Gasômetro, se viu sem alternativas senão se retirar da Bienal do Mercosul, antes mesmo da publicação da lista. “Eu cheguei a ir a Porto Alegre em setembro de 2021, com o lugar ainda incerto. Com o tempo, eu senti que estava complicado e, numa conversa com o Marcello, decidi sair, porque o trabalho só funcionaria no Gasômetro”, ela lembra. Segundo Dantas, não haveria mesmo espaço para a instalação, porque nenhum outro edifício apresentava toda a superfície envidraçada.

Daniel Lie decidiu se afastar por motivo semelhante. “Seria uma instalação para o Gasômetro, mas a obra não foi entregue”, ele explica. “Foi uma decisão amigável e conjunta com o Marcello, conversei com ele e seguimos estratégias diferentes, porque estou participando de outras mostras É muito difícil fazer eventos culturais com a gestão política brasileira.” Dantas conta ainda que Lie teria de apresentar outra proposta para o Cais Mauá, mas o cronograma ficaria apertado.

Já Luiz Roque, que participa da Bienal de Veneza deste ano, confirma a participação na Bienal do Mercosul, mas está insatisfeito com a curadoria de Dantas. Roque relata que soube da inclusão de seu nome na lista, lendo este jornal, enquanto tomava café da manhã.

“Está sendo uma grande confusão, ele deveria ter falado comigo, sou um artista vivo, a coisa poderia ter caminhado de outra forma”, destaca. Na Bienal do Mercosul, ele apresentará a videoinstalação “Ano Branco”, de 2013, que faz parte do acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, o Margs.

O artista diz que a Bienal deveria ter remasterizado o vídeo, iniciativa que ele mesmo tomará em contato com o Margs. “Parece que a curadoria não quer conversar com os artistas, há um problema de comunicação. Então, vou fazer esse trabalho público que a Bienal deveria fazer.”

Dantas pondera que Roque não foi comunicado de sua participação na mostra porque seu trabalho fará parte de um núcleo histórico, com obras já apresentadas. Logo, não faria sentido remasterizar um vídeo que deve ser apresentado tal como na época.

Maria Lynch, por seu turno, ficou surpresa ao não ver seu nome na lista. Em novembro do ano passado, Dantas a convidou para participar da Bienal do Mercosul. Ela conta que o projeto, uma instalação com projeção de pinturas, foi aprovado -e elogiado pelo curador. A obra, cuja produção custaria cerca de R$ 60 mil, também ficaria no Gasômetro.

Em abril, Dantas sugeriu que a artista procurasse financiamento externo para garantir a montagem do trabalho, pois o orçamento do evento havia estourado. Mesmo contrariada, ela procurou outros apoios, mas, em junho, recebeu um email sendo desconvidada.

“Nunca imaginei passar por uma situação como a que fui exposta, muito menos por uma instituição séria como a Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul. É inaceitável que uma artista seja desconvidada sete meses depois da confirmação de sua participação e com o trabalho em andamento”, escreveu a artista num email à direção da mostra.

De todo modo, Lynch chegou a oferecer uma série de fotografias para resolver o impasse e garantir sua vaga. Em 24 de junho, a exposição confirmou que a artista não participaria da edição, também por problemas orçamentários.

“Já a série de fotografias, as quais foram enviadas ao curador, não se encaixam no ‘statement’ e na proposta curatorial desta edição”, respondeu a Bienal do Mercosul naquele 24 de junho. “Eu nunca convidei a Maria Lynch para a Bienal, isso é ‘egotrip’ dela, eu só tomei um café com ela, mas o projeto era horroroso, a obra era ruim”, afirma Dantas.

Lynch diz que até tentou conversar com o curador, mas pouco adiantou. “Experimenta sentar no meu lugar, todo dia caem milhões ou aparecem ‘milhinhos’. Prédios que estavam certos não ficam prontos, outros espaços aparecem”, ele escreveu numa mensagem. “Isso aqui é uma montanha russa incendiando. E vem tiro de todos os lados. ‘Life hurts dear’ -‘a vida dói, querida’, em inglês. Tem que ter couro duro para aguentar.”

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