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Escola precária não vai garantir educação de qualidade em escala, diz especialista

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Depois de aprovada na Câmara, a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Fundeb chegou ao Senado com expectativa de passar sem alterações. A votação acontece nesta terça (25), mas ainda há disputas, sobretudo em torno do chamado CAQ (custo-aluno qualidade).
O CAQ indica o financiamento necessário para chegar ao padrão a partir da realidade de cada escola, o que significa mais investimentos.
O texto prevê o CAQ como referência de padrão de qualidade das escolas. Isso exigirá, por exemplo, a busca por elevação do salário docente, número adequado de alunos por sala, escolas com biblioteca, laboratório, quadra e também luz e água potável.
A desigualdade é marca da educação brasileira. Quatro em cada dez escolas de ensino fundamental não têm biblioteca e 12% não têm banheiro no prédio. A média salarial do professor não chega à metade do que é pago em países da OCDE (em valores paritários de compra). Até no cenário da América Latina a situação do Brasil é desfavorável.
Críticos do CAQ indicam riscos de judicialização ao constitucionalizar o dispositivo. A Constituição, porém, já preconiza a “garantia de padrão de qualidade”. Previsto na lei do PNE (Plano Nacional de Educação), de 2014, o CAQ não foi operacionalizado até agora.
Para Daniel Cara, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o CAQ garante controle do gasto e constitucionalizá-lo é a única forma de o Brasil ter uma escola de qualidade em larga escala. “Determina que é preciso garantir condições adequadas para o processo de aprendizagem. É o que não pode faltar.”
A Campanha elaborou o CAQ a partir de 2002. Professor da USP (Universidade de São Paulo), Cara, 42, é seu principal defensor. Foi candidato em 2018 ao Senado pelo PSOL, mas não se elegeu.
O Fundeb é o financiador central da educação básica. A Câmara ampliou de 10% para 23% a complementação da União ao fundo, de forma gradual até 2026.
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Pergunta – Por que o CAQ corre o risco de ser retirado no Senado?
Daniel Cara – Muitos não entenderam. Ele é o materializador do padrão mínimo de qualidade, em que se afirma o direito de todos ter educação em um ambiente que respeite professores e estudantes.
O CAQ determina que é preciso garantir condições adequadas para o processo de aprendizagem, e isso significa determinar insumos, os ingredientes da qualidade.

De que insumos estamos falando? É uma lista?
DC – É o que não pode faltar. Professores recebendo piso, que é o elemento principal, número adequado de alunos por turma, recursos pedagógicos, biblioteca, laboratório, quadra, banda larga, alimentação, transporte. E tem fatores ainda relevantes no Brasil, como água, banheiro, luz e esgoto.
Disseram que biblioteca não garante aluno leitor, mas a falta vai garantir? O CAQ é a garantia de igualdade de condições, como é no mundo todo. Mas, no Brasil, para a elite, a escola pública é sempre a escola do outro, nunca a do filho.
Quem veio de escola pública defende o CAQ, quem não estudou acha que é exagero mas esquece que falta dignidade nas escolas.

O CAQ leva em conta o gasto total com educação, mas o Fundeb representa parte dele. Não pode causar uma distorção a vinculação ao fundo?
DC – O dinheiro novo do Fundeb vai ter de ser orientado para a qualidade das escolas, hoje não tem isso. Talvez não se alcançe o CAQ com os 23% de complementação, mas, com o CAQ, o recurso vai para a escola.
Prefeitos são favoráveis até por causa dos 5% da complementação que devem ser destinados para a educação infantil. Ele consolida estratégia de melhor uso do recurso na escola, evita corrupção, por isso Tribunais de Contas apoiam.

A definição do CAQ passou no CNE (Conselho Nacional de Educação), mas o parecer nunca foi homologado. Não há risco de constitucionalizar mecanismo que ainda não tem definição consolidada?
DC – É o inverso: se não tiver na Constituição, nunca teremos escola de qualidade em escala. O parecer do CNE, de 2010, não foi homologado porque diziam que não garante efeito vinculante para implementação. Veio a lei do PNE e o CAQ entrou como o instrumento de sua realização.
A emenda do teto de gastos [que limita o aumento das despesas no Orçamento federal à inflação do ano anteiror] matou o plano e trabalhamos para que o Fundeb ficasse fora do teto.
Se o CAQ não foi implementado por norma do CNE, lei do PNE, tem de ir para a Constituição. Se não, garanto que não estará nas leis de regulamentação. A desculpa é sempre que falta na lei maior.

Vozes contrárias ao CAQ e ao aumento de recursos do Fundeb citam exemplos, como o do Ceará, que mesmo em contexto adverso alcançam bons resultados.
DC – Escola precária não vai garantir melhoria de desempenho em escala. O Brasil há 200 anos aposta nisso e nunca deu certo.
O aprendizado deve orientar a política pública, mas muitas escolas não têm água potável. Aí pegam exceções, acham que a indignidade [das condições] das exceções é valiosa, e nunca se resolve o problema de 40 milhões de alunos.
Sobral, por exemplo, não tem escolas precárias. Se não tivermos esse mecanismo, São Paulo, município mais rico, vai continuar com escola de lata.

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Gasto é sinônimo de qualidade? Há, de fundo, uma ideia de que enquanto não tiver 100% das condições não dá para cobrar melhoria?
DC – Isso nunca foi nossa posição. Os professores tiram leite de pedra mesmo em péssimas condições. A escola pública é extremamente eficiente porque, com pouco, faz muito.
A questão com o CAQ é o que o Brasil quer como nação. Se quer respeitar o direito à educação e ser uma sociedade justa, economicamente próspera, precisa dar um passo além.
A médio e longo prazo vai haver uma revolução. Portugal priorizou a educação em 1974 e foi dar resultado em 2014. Certamente vai ter melhora no aprendizado das crianças que estudam em escolas com biblioteca, internet, laboratório, quadra.

Ao prever mais custos, o CAQ não pode desincentivar a inclusão de jovens fora da escola ou piora na evasão?
DC – Hoje não temos padrão e poucos gestores incentivam a busca ativa. A principal demanda dos alunos é um bom espaço escolar, como mostrou pesquisa do Porvir. E é tão óbvio.
Para o jovem da periferia, a escola é o espaço mais importante da vida, para aprender, interagir, se divertir. O jovem quer estar em uma escola de qualidade.
Vamos ter lei de regulamentação, um processo de transição para definição e depois para a busca do padrão de qualidade. E é preciso que o governo federal faça esforços técnicos e financeiros no apoio às redes.

Há críticas de que o CAQ pode ampliar judicialização. Como vê isso?
DC – Estão querendo dizer que fortalecer a escola pública enfraquece o direito à educação, o que não faz sentido. O CAQ vai aumentar a força do direito à educação.

O Fundeb prevê mínimo de 70% dos recursos com salários, peso similar no CAQ. Há corporativismo, como acusam críticos?
DC – O professor é a essência do processo educativo. Educação é o compartilhamento do legado humano e a qualidade é dada concretamente na relação entre professores e alunos.
Os 70% são uma conta na ponta do lápis. O Brasil tem de garantir escola que permita experiências, com profissionais plenos, por isso tem de ser valorizado.
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RAIO-X
Daniel Cara, 42
Graduado em ciências sociais pela USP, é mestre em ciência política e doutor em educação, pela mesma instituição. É professor da Faculdade de Educação da USP. Coordenou, de 2006 a 2020, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, da qual ainda é membro.