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Jean-Claude Bernardet fala de Aids e de câncer em novo livro sem meias-palavras

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1996, o crítico e professor aposentado de cinema Jean-Claude Bernardet, da Universidade de São Paulo, publicou “A Doença, Uma Experiência”. Vigoroso, austero, sem sinal de autocomiseração, o ensaio biográfico logo se tornou uma referência entre as produções da literatura brasileira que tinham a Aids como tema.

“Preciso sair desse limbo dos pré-mortos para onde vou sendo empurrado, o que vai me matar não é a doença, é a rede que está se fechando em volta de mim, os doentes na sala de espera, os conselhos amigos, os corredores dos serviços públicos, o médico de quem desconfio e que não dá a mínima para a ligeira dor de cabeça que sinto de uns dias pra cá”, escreveu Bernardet, portador do HIV.

Depois de 25 anos, “A Doença” volta a ser publicado junto com escritos recentes no livro “O Corpo Crítico”. Ao longo de nove textos, o autor de 84 anos evita subterfúgios ao questionar a “faceta robótica” de médicos e enfermeiros. É ainda mais contundente com a indústria farmacêutica.

No ensaio que leva o nome do livro, o personagem (ou o próprio Bernardet?) descreve a perplexidade de muitos à sua volta com a decisão dele de não seguir com o tratamento de um câncer de próstata, “Câncer nº 2”, como diz. “Explico: a idade, a quase cegueira, a agressividade do tratamento, os efeitos colaterais.”

As narrativas, em geral curtas, expõem um homem contrariado com a dificuldade de definir o destino do próprio corpo, “corpo octogenário, aidético e canceroso”, como descreve. “Eles não eram médicos do paciente, eram médicos do meu câncer, o qual os preocupava mais que o portador do tumor. Eu mal lhes interessava (apesar da amabilidade formal).”

O estímulo do sistema de saúde à longevidade a qualquer preço —ou melhor, a preços altos— em detrimento do bem-estar do paciente é uma questão central em “O Corpo Crítico”.

Bernardet dá um exemplo, a venda de remédios a granel, prática ainda pouco comum no Brasil. “Uma receita médica indica que você só vai precisar de seis comprimidos, mas só é possível comprar uma caixa com 15. Terá, então, que jogar fora os outros nove ou deixar em desuso. Como acontece em outros países, nós deveríamos poder pagar apenas pelos comprimidos que precisamos, não é?”, afirma. “Há algum movimento de consumidores para mudar isso por aqui?”

Apesar do tom de inconformismo e do estilo seco, que recusa adjetivos e advérbios, “O Corpo Crítico” está distante da abordagem jornalística. O terreno onde ele pisa com pés firmes é a literatura. Os relatos do autor se confundem com a ficção ou, como ele prefere, a autoficção.

“Há situações que eu criei. Além disso, o fato de montar uma ordenação narrativa e uma coesão sintática para que o texto se torne coerente leva, de certa forma, à ficção”, diz.

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Segundo ele, existe uma forte ligação entre os seus ensaios e “Jogo de Cena”, de 2007, filme em que Eduardo Coutinho entrevista mulheres —algumas são atrizes, outras não— em um teatro e leva ao limite as reflexões sobre realidade e representação.

“No filme, as mulheres entrevistadas não estão contando episódios de suas vidas pela primeira vez, já fizeram uma organização narrativa. Ou seja, se perdeu o contato com a raiz original daquela vivência”, afirma Bernardet, também ele um ator.

Em “A Doença, uma Experiência”, o narrador faz ironia com a surpresa dos médicos diante da sua resistência. “Estou pensando numa nova carreira: apresentar-me em congressos de medicina.”

Depois de “#eagoraoque”, filme dirigido por ele e Rubens Rewald, que passou por festivais como a Mostra de São Paulo do ano passado e deve ser exibido no Festival do Rio deste ano, Bernardet prepara um longa em parceria com a assistente de direção Emily Hozokawa. Não só. Também inicia o trabalho para um livro com a amiga e tradutora Heloisa Jahn. Como escrever é difícil por causa de sua visão muito debilitada, os textos tomarão como base as conversas que eles terão ao longo de um ano.

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O CORPO CRÍTICO

Preço R$ 40 (e-book, R$ 28)

Autor Jean-Claude Bernardet

Editora Companhia das Letras (128 págs.)