Transporte precisa se reorganizar para superar perda de passageiros na pandemia, diz dirigente de associação

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Brasil tem hoje 21 sistemas metroferroviários em operação, distribuídos em nove estados e o Distrito Federal, concentrados principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro. Em seus 1.116 km de linhas construídas, pouco para um país de dimensões continentais, foram transportados diariamente, em 2020, 5,8 milhões de passageiros, volume que despencou devido à pandemia e que talvez não volte mais aos níveis pré-Covid-19.

Diretora-executiva da ANPTrilhos (Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos), Roberta Marchesi disse que a perspectiva de que 20% dos antigos usuários não voltarão ao sistema principalmente por conta da possibilidade de trabalho remoto nas empresas faz com que seja necessário discutir o futuro do setor.

A associação, que completou 11 anos na última semana, também tem discutido formas de financiamentos do sistema –como a gratuidade de passagens– e a implantação de trens regionais, que poderiam fazer o setor crescer no país.

Leia, a seguir, trechos da entrevista.

PERGUNTA – O Brasil tem hoje 1.100 km de transporte de passageiros sobre trilhos, o que é muito pouco para um país desse tamanho. É possível projetar como será o futuro do setor?

ROBERTA MARCHESI – Não temos expectativa [numérica] para os próximos anos, mas o que vemos hoje é um foco muito grande nesse segmento. Governos, tanto estaduais quanto federal, já entenderam que o setor tem uma potencialidade enorme, existe uma demanda reprimida por esse tipo de investimento.

Quando olhamos para os investimentos feitos, a gente vê que é um segmento que precisa ser considerado.

P. – O maior exemplo disso, que sempre tenho falado, são as concessões das linhas 8 e 9 de São Paulo. E por quê?

RM – Não é o maior sucesso ou porque foi o maior projeto, mas é o maior exemplo de como o setor tem capacidade de atrair investimentos. No meio da maior crise setorial que já existiu na história, tivemos as concessões de duas linhas, um resultado excelente, quase duas vezes o valor da outorga inicial. Se na crise o setor consegue atrair investimento privado, o que não conseguiria fazer fora da crise?

Isso é um alerta positivo da importância que o segmento tem e a capacidade não só de melhorar, mas de fazer isso com capital privado.

P. – O setor foi altamente impactado na crise e ainda não se recuperou. O que está sendo feito pelas empresas?

RM – O setor foi, como toda a mobilidade, fortemente atingido. Houve uma queda muito abrupta de passageiros que se refletiu na receita do setor. O grande problema é que é um setor relativamente novo. Quando pensamos nas PPPs (Parcerias Público-Privadas) que vieram a partir de 2010, há um marco regulatório muito mais forte, mais seguro, com segurança de receita para o operador, mas há outros contratos, mais antigos, sem esse tipo de salvaguarda.

Esses sofreram muito mais, que é o caso do Rio de Janeiro. As duas primeiras concessões foram do Rio, com SuperVia e Metrô Rio. Hoje o setor no geral está conseguindo se segurar, muito pautado nessa segurança contratual dos mais novos, mas os operadores do Rio estão tendo de fazer muitos cortes e adequação de oferta para conseguir minimamente reduzir o volume de gastos e seguir operando.

A primeira coisa que tem de fazer é uma repactuação muito rápida, é um caso muito sério e já se chegou no limite para algumas operações. Se o governo do Rio, com apoio eventual do governo federal, não olhar para o estado e buscar uma solução, é provável que o sistema em algum momento pare.

P. – Há algum sinal de recuperação da demanda?

RM – A crise não passou. Estamos desde março de 2020, um ano e meio, em crise. Todos achavam que nós conseguiríamos recuperar a demanda, mas não. Vemos que os últimos números do setor aéreo, que era a grande preocupação do governo, já está retomando 90% dos voos, enquanto o setor de mobilidade continua amargando 50%.

P. – Nenhum dos operadores opera próximo de níveis pré-pandemia?

RM – A média está baixa para todos. Duas coisas acontecem. Primeiro um movimento natural, porque algumas escolas não voltaram ao sistema presencial. Segundo, há um movimento de mercado muito forte que vai se manter com relação ao trabalho remoto. Alguns estudiosos apontam que 15% a 20% dos passageiros habituais não voltarão, porque ficarão com trabalho remoto.

Se a gente pensa que hoje amarga queda de 50% e perdemos esses 20%, a perspectiva máxima é de atingir 80% do pré-crise. O que precisamos é reestruturar, otimizar o transporte. A conexão entre eles é fundamental, não temos mais espaço para concorrência entre modais, ter três ou quatro linhas de ônibus passando no mesmo lugar ou uma linha de trem e duas de ônibus percorrendo o mesmo sentido.

É fundamental que haja integração para fazer com que ônibus e trens andem mais cheios e eles possam compartilhar. Além disso, a gratuidade é um problema, precisamos sensibilizar nosso Legislativo e Executivo de que as gratuidades do transporte público precisam ser pagas. O governo não pode definir que haverá gratuidade para tal faixa e eles andarem de graça sem que ninguém arque com isso. Não somos contrários à gratuidade, desde que o governo arque com o custo. Em muitos estados, a gratuidade não é ressarcida.

P. – Nesse cenário, como ficam discussões históricas, como a de tarifa zero no transporte?

RM – Seria o melhor dos mundos para a população e os operadores, desde que o governo se organizasse para criar uma forma de financiar essa operação. Uma vez que o custo da operação é garantido, não somos contra. O problema é que se discute apenas a ponta, que é o custo da tarifa, mas não vejo em nenhum momento a discussão sobre qual mecanismo vai ser adotado para garantir esse resultado.

P. – Foi com base nesses pontos que a associação lançou um documento no início de agosto?

RM – Naquele documento a gente reuniu algumas das principais linhas de pensamento e de atuação que em nosso entendimento são fundamentais para avançarmos nesse modelo. Nada impede que busquemos outras soluções, mas vamos ter de nos debruçar sobre isso, todos juntos, operadores, governos e sociedade civil, para chegar num novo mecanismo de financiamento.

A atuação do Ministério da Infraestrutura tem sido importante em relação aos trens regionais, pela primeira vez vemos um ministério dedicado a esse tema, a criar um marco para o transporte regional de passageiros.

P. – O Trem Intercidades, em São Paulo, seria o melhor exemplo disso, embora seja apenas dentro do estado?

RM – Ele nasce no âmbito estadual, mas pode avançar, e começaremos a ter trens interestaduais. Esse projeto estamos apoiando, acreditamos que vai ser uma vitrine, assim como o VLT do Rio. O Intercidades vai ser um modelo para todo o Brasil de um trem de passageiros moderno.

P. – O setor, até por ter operações muito dispersas, não falava a mesma voz. Foi por isso que surgiu a ANPTrilhos?

RM – A principal conquista foi a própria união do setor. Não existia 11 anos atrás uma organização que tratasse especificamente dos interesses dos operadores de transporte de passageiros sobre trilhos. A estrutura do governo federal relegava o setor porque não tinha uma entidade específica que tratasse com o governo. Foi fundamental para que ao longo desse tempo o setor passasse a ser considerado nas pautas das políticas públicas. Se falava muito de transporte rodoviário, mas sobre trilhos, não. Como os sistemas são estaduais, nos estados acabam tendo uma articulação boa, mas em âmbito federal faltava isso.

Não foi um caminho fácil. Uma das maiores vitórias que tivemos foi com relação ao projeto de lei do setor emergencial. Quando surgiu na Casa, foi para atender o transporte rodoviário. Depois, com muita rapidez, foi incluído o transporte sobre trilhos no texto. Ainda hoje lutamos contra esse tipo de exclusão, mas aos poucos o Legislativo e o Executivo federais já entendem, consideram o setor nas políticas públicas.