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De Roberto Carlos a Xuxa: série do Globoplay conta histórias dos hitmakers Sullivan e Massadas

A memória oficial tende a associar a música brasileira nos anos 1980 à explosão das bandas de rock. Mas quem passar um pente fino pelos programas de auditório e pela programação de rádio do período vai esbarrar muito mais frequentemente mesmo é com eles: Michael Sullivan e Paulo Massadas, respectivamente um pernambucano (nome real: Ivanilton de Souza Lima) e um carioca, ambos hoje com 73 anos de idade, que se reencontraram há dois anos para gravar “Sullivan & Massadas: retratos e canções”, série documental dirigida por André Barcinski que estreia esta quarta-feira no Globoplay.

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Cantores de bailes nos anos 1970 (Sullivan ganhou esse nome ao gravar “My life”, canção em inglês que estouraria na trilha da novela “O casarão”, exibida em 76), eles foram compositores da maior quantidade de hits, para as mais diferentes vozes e nos mais variados estilos, registrada ao longo da década seguinte. Deles, Tim Maia gravou “Me dê motivo” e “Leva”. Com Tim, Gal Costa imortalizou “Um dia de domingo”. Roberto Carlos, o Rei, estourou “Amor perfeito”.

Roupa Nova, este não seria o mesmo sem o impulso de “Whisky a Go Go”. Nem Alcione seria a rainha da dor de cotovelo sem “Estranha loucura” ou “Nem morta”. Pense ainda em Fagner (“Deslizes”), Joanna (“Amanhã talvez”), Sandra de Sá (“Retratos e canções”) e até na existência de Xuxa e do Trem da Alegria como artistas de palco e de disco: tudo isso é Sullivan e Massadas.

E tudo começou quando Paulo César Guimarães Massadas, que cantava e tocava baixo, tendo se apresentado em bailes pelo Rio de Janeiro com os organistas Lincoln Olivetti e Lafayette e com a cantora Rosana, resolveu aceitar o convite de entrar para a banda de Michael Sullivan só “porque ele estava em uma gravadora”.

— Eu já estava de saco cheio de ficar fazendo baile, resolvi apostar naquilo e a gente fez uma amizade. Comecei a mostrar uma coisinha aqui, outra ali, e a gente foi se encaixando, amadurecendo uma maneira de compor — conta Massadas, por Zoom, de Los Angeles, onde vive desde a dissolução da dupla, tocando projetos musicais de artistas americanos e latinos. — Percebi no Sullivan essa força do cara desbravador, enquanto eu sou um cara muito pensador. A gente ajustou isso bastante, trocou muito, para saber aonde realmente poderia chegar.

Cada um deles fazia letra e melodia, mas logo a divisão de tarefas ficou mais organizada.

— O meu lance é trabalhar mais, observar o que está ao redor, trabalhar as ambiências daquele momento vivido. Então me joguei mais nas letras, e o Sullivan, nas melodias, coisa que ele fazia muito bem e muito rápido — conta Massadas, para quem eles logo chegaram a uma forma muito natural de traduzir emoções em canções. — Cada música tem uma linha melódica e uma história para ser decifrada. Você pode escrever dez coisas diferentes em cima daquela melodia, mas uma é a perfeita, é a melhor. O alvo tem vários pontos, mas a gente só pensava na mosca.

Depois de um bom tempo treinando a parceria com artistas do forró, veio em 1983 o primeiro hit nacional: “Me dê motivo”. Ao longo dos 11 anos seguintes, eles fariam algo entre 60 e 80 músicas daquelas que todo mundo sabia cantar. Segundo Paulo Massadas, a máquina da composição da dupla não obedecia a “uma tática só mecânica”: havia todo um processo de captação emocional, de lidar com o que o público quer, com a emoção e com a mensagem, a linguagem e o estilo de cada artista (“um é mais romântico; outro, mais agressivo; ou até vanguarda”). Logo, se deram conta que poderiam compor para qualquer artista.

— O principal é que a gente prestava muita atenção a tudo que estava ao redor, qualquer coisa que se mexesse, a gente decodificava aquilo. O passado do Sullivan é do Nordeste, todo aquele folclore riquíssimo. Quando juntou com o meu de carioca, ficou um manancial que a gente, de início, nem sabia que tinha! Hoje não sei como as pessoas podem compor sem ter tido essas influências — admira-se Massadas. — Vivemos num dos momentos mais ricos para a música, a década de 1980, ela abriu as portas para grandessíssimos intérpretes. E ainda tinha o Lincoln Olivetti (como arranjador), com uma sonoridade absurda, compatível com a do Quincy Jones nos Estados Unidos. Quando todos esses elementos se juntaram, a gente viu que tinha uma coisa poderosíssima.

Para Michael Sullivan, apesar das diferenças de classe social (ele chegou a passar fome no Rio, aos 19 anos), uma das razões de a dupla ter dado certo é a de que eles viveram “toda a música que aconteceu a partir dos anos 1950”:

— No Rio, aconteceu de eu sair da rua e começar com uma banda de baile, Os Nucleares, com a qual conheci o Tim Maia e o Raul Seixas antes de eles estourarem. O Paulo era dos bailes, eu era dos bailes, nós cantamos todas as músicas da época, mesmo ele sendo mais do rock e eu, da black music. A gente falava a mesma linguagem, o tempo todo.

Para todos os públicos

André Barcinski, que conheceu a dupla na feitura do livro “Pavões misteriosos” (sobre o pop brasileiro dos anos 1970 desprezado pela crítica), sempre sonhou com um livro ou documentário só de Sullivan e Massadas.

—Eles compuseram samba, forró, pop-rock, música infantil, trilhas de filmes, temas para programas de auditório (caso de “Do tempo em que”, primeira canção de abertura do “Domingão do Faustão”). O Massadas fala que eles são a dupla que fez músicas em mais gêneros diferentes e não duvido. Os caras fizeram música para os Demônios da Garoa e para Tim Maia! E eles só tinham um concorrente na música infantil, o Balão Mágico, na gravadora CBS — lembra ele, que, na série, superou a cronologia fazendo o primeiro episódio sobre 1985, ano mais emblemático da carreira deles, em que emplacam “Whisky a Go Go”, “Leva” e “Um dia de domingo”. — Eles conseguiram entender a necessidade de todo tipo de público, do que é mais “chão”, como eles chamam, até o do suprassumo da MPB. Não era uma coisa normal. Eles fizeram música para a Gal. E, quando gravou “Deslizes”, Fagner ainda era, de certa forma, o do “Mucuripe”, o Fagner universitário.

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‘Canções, não, filhos’

Gravado no final de 2021, “Sullivan & Massadas: retratos e canções” não apenas promoveu o reencontro da dupla — que terminou a parceria de composição em 1994, mas, segundo Sullivan, manteve o contato e a amizade “até mesmo porque nós temos 600, quase 700 canções juntos” (“canções, não, filhos!”, corrige Paulo Massadas). A série ainda foi a responsável por eles estarem novamente ao lado de Xuxa, para quem não somente compuseram alguns de seus maiores sucessos (“Lua de Cristal”, “É de chocolate”, “Parabéns da Xuxa”), como produziram seus LPs de maior sucesso.

— Xuxa falava que não sabia cantar. Eu olhei para ela, virei para o Sullivan e disse: ‘Xuxa vai estourar, eu não sei como, mas vai estourar’ — recorda-se Massadas, que encontrou o amigo e a apresentadora para as gravações no Teatro Municipal de Niterói, onde Tim Maia fez seu último show (e a série ainda inclui um show-tributo, com as participações de Zeca Baleiro, Xande de Pilares, Carlinhos Brown, Ferrugem e Anavitoria, cantando clássicos de Sullivan e Massadas).

André Barcinski fez questão de não deixar passar batidos na série os ataques que Sullivan e Massadas receberam da crítica musical nos anos 1980.

— Acho que é muito fácil para a gente hoje criticar a crítica, mas, lendo as matérias da época, dava para ver que eles foram um fenômeno tão grande que parecia até, para quem estava de longe, que era uma coisa imposta, que a indústria estava impingindo músicas de Sullivan e Massadas ao Brasil inteiro — observa. — Mas ninguém chega para o Roberto Carlos e obriga ele a gravar uma música que ele não quer, tampouco o Tim Maia, a Gal Costa ou o Fagner. Mas foi um domínio tão grande, durante tanto tempo, que eu entendo a reação. O legal é que o tempo passa e aí você começa a analisar a música, e não só as circunstâncias políticas sociais da cena musical da época.

Hoje, se há pessoas com duras críticas ao estado de coisas da composição de música popular, estas são Michael Sullivan e Paulo Massadas.

— Vejo esses grupos de composição e ali, geralmente, no máximo dois ou três de cada um têm talento para ser compositor. Quando junta o grupo, o cara dá uma opinião de uma vírgula e aí acaba entrando na música — reclama Sullivan. — Acho que hoje a gravadora não compra um sucesso, um talento, ela compra um número. A gravadora pode gostar do artista, achar que ele compõe e canta para caramba, mas, se ele não tiver números, manda ele voltar para a rede até ter. É um outro mercado.

Massadas assina embaixo:

— Antes, você tinha que ter música de qualidade, que seduzisse as pessoas, para que as gravadoras pudessem vender seus produtos. Hoje você pode ser um péssimo compositor, um péssimo cantor, mas se você se expõe muito e aí tem aquela visibilidade, todo mundo quer fazer a coisa com você. Só que você não sabe fazer o que deveria para seduzir as pessoas. As pessoas viciaram nessa coisa de número e esqueceram da emoção. Hoje ficou tudo ficou extremamente mecânico e qualquer um pode fazer música. Mas, quando se coloca todo mundo na estrada, o trânsito empaca. Fica tudo lotado, são bilhões de músicas que estão no ar.

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E Sullivan completa:

— Antigamente era difícil porque as gravadoras comandavam tudo, e hoje você tem como mostrar as suas músicas, o meio é imensamente mais democrático. Mas junto vem a moda, e o modismo é sempre assustador para todos nós. O “Me dê motivo” que eu estou cantando na série é um trap, o que não é problema porque, se você analisar, a música já tinha um lance de MC, mas é um baladão, um blues. Nossas músicas podem virar qualquer coisa. Mas acho que hoje existem poucos compositores diferenciados, tudo parece a mesma música, no funk, no trap ou no pagode.

Desde 1994, a dupla não compôs mais junta. Nem pensa em fazê-lo (“a gente pode passar a vida inteira cantando esse repertório”, argumenta Massadas). Mas planeja fazer em 2024 um show em conjunto para, como diz Sullivan, “lustrar o passado”.

— Se você deixa uma coisa no canto, ela apodrece e vai embora. Mas, se você congelou ela, quando descongela, ela está lá, intacta. Sugiro até que no show a gente saia de dois congeladores para cantar — brinca Massadas. — A gente está inteirão, e ali o nosso passado passará a viver num eterno presente.