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Ao delegar bloqueio de vias a estados, Bolsonaro busca acabar com prática inconstitucional

BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em um aceno aos governadores, o presidente Jair Bolsonaro delegou a eles a possibilidade de restringir a circulação de veículos por estradas, inclusive interestaduais, para combater o coronavírus.
Os limites vinham sendo impostos de maneira unilateral pelos estados, o que contraria frontalmente a Constituição, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.
Na noite de segunda-feira (23), o governo publicou uma resolução que transfere da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a órgãos de vigilância dos estados a competência para prever as condições técnicas para fechamento ou bloqueio de estradas.
Pelo texto, publicado em edição extra do Diário Oficial da União, ficou delegado aos órgãos estaduais fazer a recomendação técnica para “o estabelecimento de restrição excepcional e temporária por rodovias de locomoção interestadual e intermunicipal”.
A normativa é assinada pelo diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, militar próximo a Bolsonaro.
A União e os estados vinham travando uma batalha sobre as decisões de fechar temporariamente estradas e aeroportos. Governos de estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Maranhão e Bahia editaram decretos para impor restrições de acesso.
As competências da União estão expressas no artigo 22 da Constituição, que inclui legislar sobre trânsito e transporte.
No parágrafo único ao final do artigo, a Carta autoriza que o governo federal delegue aos estados a decisão de tomar medidas sobre esses temas, mas com base na aprovação de uma lei complementar.
Essa possibilidade dada por Bolsonaro aos estados, no entanto, veio por meio de um instrumento mais fraco, uma resolução de agência federal, o que em tese pode gerar questionamentos jurídicos.
É improvável que isso ocorra, contudo, dado que a medida atende aos interesses de União e estados e não haveria tempo hábil para o Congresso aprovar uma lei, ainda mais com as votações prejudicadas pela pandemia.
Acadêmicos e profissionais do direito ouvidos pela reportagem são unânimes em apontar que o cenário anterior à resolução era de flagrante inconstitucionalidade.
Há também exemplos de prefeitos bloqueando estradas para isolar seus municípios, o que não é coberto pela resolução da Anvisa e segue sendo irregular.
Para Carlos Ayres Britto, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, o próprio fato de a OMS (Organização Mundial da Saúde) ter decretado situação de pandemia demonstra que a competência para medidas de restrição de circulação é da União.
“É uma decisão de um organismo internacional do qual o Brasil faz parte. O caráter de pandemia do vírus já coloca a questão no plano das relações internacionais, que são de competência exclusiva da União”, afirma.
Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Floriano Peixoto de Azevedo Marques diz que é preciso respeitar outro princípio da Constituição, o da coordenação de saúde pública.
“A saúde pública na Constituição é operada coordenadamente no âmbito do SUS [Sistema Único de Saúde]. Não é cada um faz o seu”, afirma.
Ele entende que a resolução da Anvisa vai no sentido de respeitar essa exigência de harmonia entre os entes da Federação.
Segundo Marques, isso não significa que prefeitos possam fechar estradas e proibir a entrada de cidadãos de fora. “O máximo que um prefeito pode fazer é limitar a circulação de certas vias públicas em sua cidade “, diz.
Professor de direito constitucional do Instituto de Direito Público (IDP), Daniel Falcão cita trecho do artigo 21 da Constituição que diz ser competência da União “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas”.
Falcão menciona também a ADI (Ação Direita de Inconstitucionalidade) 3112, que tratou do Estatuto do Desarmamento, em 2007. Nela, o relator, ministro Ricardo Lewandowski, menciona o princípio de que estados legislam em interesse regional e a União, em interesse nacional.
“Estado barrando divisa eu vejo como interesse nacional, há interesse de outro estado em jogo”, afirma Falcão. “Se for uma restrição dentro do estado, na minha opinião poderia ser feito. Aí é interesse regional”, diz.
Professora de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, Eloísa Machado de Almeida afirma que movimentar-se é um direito humano.
“Isso significa dizer que toda restrição a esse direito só pode ser feita com justificativa e razoabilidade, em situações de emergência de saúde pública ou calamidades”, afirma. A própria lei da quarentena (13.979/20), que é federal, prevê a possibilidade de restrições a esse direito.
Porém, diz ela, a locomoção entre estados é livre, e a Constituição não permite restrições determinadas por membros da Federação.
Estados e municípios poderiam tomar atitudes de vigilância sanitária em suas jurisdições, havendo reconhecimento de emergência ou calamidade.
“A restrição de circulação de pessoas só pode ser feita de forma justificada e razoável e enquanto durar a emergência. Qualquer restrição sem critérios adequados pode se transformar em política discriminatória”, diz ela.

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