Cultura

O Império contra-ataca e ganha espaço na Cultura do governo Bolsonaro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Daqui a pouco mais de dois anos, o bicentenário da independência do país deverá provocar uma onda de nostalgia do Império, mas no governo Jair Bolsonaro ela já chegou.
O período que vai de 1822 a 1889 está em alta numa gestão conservadora e cheia de lideranças monarquistas.
A Secretaria Especial da Cultura, por exemplo, passou a ser povoada nos últimos meses por entusiastas da monarquia, que querem mudar sua imagem considerada negativa.
O último passo foi a posse há uma semana de Olav Antonio Schrader na superintendência do Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do Rio de Janeiro. Ligado ao Movimento Brasil Real, pró-monarquia, Schrader foi uma indicação do deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança, do PSL paulista, descendente da família real.
Administrador de construções históricas no bairro de São Cristóvão, no Rio, ele terá a responsabilidade sobre a preservação de um dos maiores acervos patrimoniais do Império no país. Procurado, ele não quis dar entrevista.
No ano passado, Schrader escreveu um artigo sobre o primeiro aniversário do incêndio no Museu Nacional. Nele, lamentava não só as labaredas, mas o fato de o prédio abrigar uma coleção científica, com fósseis e meteoritos.
A indignação, compartilhada por muitos monarquistas, se deve ao fato de o Palácio de São Cristóvão, tornado museu nos primeiros anos da República, ter sido a residência da família imperial. Lá também foi assinada a independência pela imperatriz Leopoldina, dias antes do grito do Ipiranga.
“No festival de morte travestida e de substituição por um museu que lá não nasceu e lá não deveria estar, prefiro lembrar dona Leopoldina. Lá está ela para assinar o nosso surgimento entre as nações, com os homens do Conselho de Estado em pé e o gigante José Bonifácio ao lado sussurrando sabedoria e liberdade”, escreveu.
Segundo seu padrinho, o deputado Luiz Philippe, a valorização do Império tem um teor de reparação histórica. “Dom Pedro 2º era progressista. Não era tão católico como outros monarcas, adorava a ciência e a tecnologia, se preocupava em integrar o índio. Como um cara desse pode ser retrógrado ou reacionário?”, questiona.
O resgate da monarquia é parte da guerra cultural da direita contra uma suposta visão marxista da história, que exaltaria índios e negros em detrimento da matriz portuguesa.
Vem daí, por exemplo, a valorização da princesa Isabel na abolição, enquanto a esquerda prefere Zumbi dos Palmares.
“Não vejo problema em valorizar o índio e o negro. O erro é fazer isso em prejuízo do que o português também trouxe. O português não veio oprimir todas as raças, não veio ao Brasil apenas com o propósito de explorar”, afirma o deputado.
Essa visão que destaca a contribuição europeia está em vários projetos culturais da nova direita, como, em filmes da produtora Brasil Paralelo, alinhada ao bolsonarismo.
Presença frequente nessas produções e historiador especializado no Império, o presidente da Biblioteca Nacional, Rafael Nogueira, diz que o século 19 “padece de amnésia histórica”.
“A compreensão do período está muito associada à escravidão. A escravidão era uma questão de época, não de regime. O Brasil teria sido escravagista mesmo se fosse uma República”, diz ele, que é pesquisador da vida de José Bonifácio, o patriarca da independência.
Segundo ele, a visão de uma monarquia obscurantista é falsa. “A monarquia estava se modernizando quando terminou. Estava libertando os escravos e iniciando a industrialização.”
À frente da instituição que tem 8 milhões de itens no acervo, Nogueira já planeja diversas ações para o bicentenário da independência, como publicação de livros, eventos com historiadores e exposições.
Uma delas terá como tema dona Maria 1ª, mãe de dom João 6º, que ganhou o epíteto “A Louca” –mais uma injustiça histórica, segundo ele.
“Foi a primeira rainha do Brasil. Na questão de valorizar as mulheres, cabe muito bem. Ela buscou unir aspectos da fé com a ciência. Estimulou a Academia de Ciências de Lisboa, dava bolsas para portugueses estudarem na Europa. Tanto que foi a bolsa que José Bonifácio ganhou”, afirma.
Outras instâncias também se movimentam. A Fundação Cultural Palmares, órgão de preservação da cultura negra no Brasil, planeja uma nova biblioteca em que o papel das cortes portuguesas na identidade nacional terá destaque. Procurada para detalhar o projeto, a fundação não respondeu.
Uma ameaça à onda monárquica, no entanto, é o caos na Secretaria Especial da Cultura, que acaba de empossar o quinto chefe, o ator Mário Frias.
Eminência parda da secretaria, a deputada federal Carla Zambelli, do PSL paulista, que é monarquista militante, diz já ter falado com Frias sobre o resgate do período imperial.
“Conversei com ele [Frias] que o resgate histórico do país precisa ser feito. Tivemos uma preocupação com isso desde a campanha, o próprio presidente Bolsonaro já dizia isso”, diz.
Segundo ela, há um ranço contra o período imperial, em razão de uma visão ideológica na escola. “O ponto de vista que os professores têm do período é enviesado, esquerdista.”
Autora de livros sobre o Império, a historiadora Mary del Priore diz que o período é “riquíssimo” e merece ser mais bem explorado, para além de seus personagens conhecidos, como os dois imperadores e a princesa Isabel.
“Um exemplo é a vida intelectual das mulheres, que estiveram presentes desde a Guerra Farroupilha até o movimento da abolição. Ou a transformação das cidades, que no período anterior, o colonial, tinham ruas apertadas e eram assoladas por epidemias como cólera, varíola e febre amarela”, afirma ela, que está organizando uma exposição sobre dona Maria 1ª na Biblioteca Nacional.
De acordo com ela, o bicentenário é um momento privilegiado para trazer à luz novas interpretações sobre o período. “Para onde você olhar, o Império é um deslumbramento.”

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