Exterior

Filme relembra envio de 14 mil crianças de Cuba aos EUA durante Guerra Fria

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Eram tempos de muita incerteza. Os amigos [da escola] iam desaparecendo”, lembra Zenon Arribalzaga, cubano que vive há quase seis décadas nos EUA.
Em 1961, com medo das reformas promovidas por Fidel Castro, os pais de Arribalzaga enviaram o filho de 15 anos de Havana para Miami. Não foi um caso pontual.
Numa fase da Guerra Fria marcada por tensão extrema, cerca de 14 mil crianças e adolescentes embarcaram, sem a companhia dos pais, em voos de Cuba para os EUA. O êxodo ocorreu a conta-gotas, entre dezembro de 1960 e outubro de 1962.
Era a chamada Operação Pedro Pan, promovida por grupos cubanos anticastristas, pela Igreja Católica sob o comando do padre Bryan Walsh e pelo governo dos EUA.
Pouco conhecido no Brasil, esse episódio é tema de um filme dirigido por Kenya Zanatta e Mauricio Dias. O documentário “Operação Pedro Pan” estreou nesta sexta (17) no canal Curta!.
Como lembra no filme o historiador Jesús Arboleya Cervera, especialista nas relações entre Cuba e EUA, a maior parte dos setores da sociedade do país caribenho se opunha à ditadura de Fulgêncio Batista e celebrou, portanto, a tomada do poder pelas tropas comandados por Fidel em janeiro de 1959.
“Como sempre acontece nos processos políticos, as pessoas se unem mais facilmente na hora de definir o que não querem do que na hora de decidir o que querem”, diz Cervera.
Com o avanço de transformações profundas, como a nacionalização de escolas particulares, frequentadas por muitas das crianças da Operação Pedro Pan, e com a relação cada vez mais próxima de Fidel com a União Soviética, cresceram os grupos contrarrevolucionários em Cuba, aliados às pastorais católicas.
Em meio aos enfrentamentos, muitos deles violentos, aumentavam os rumores de que o Estado tomaria das famílias a tutela das crianças.
É nesse contexto que, há seis décadas, nascia a Operação Pedro Pan, como é conhecida nos EUA, ou Operação Peter Pan, conforme os cubanos se referem ao episódio.
Para Kenya Zanatta, codiretora do documentário, um conjunto de fatores impulsionou essa mobilização.
“Para que um pai e uma mãe tomem a decisão extrema de mandar o filho sozinho para outro país sem data para voltar, é preciso que haja uma atmosfera de medo e incerteza que os leve a acreditar nos boatos mais improváveis e ter certeza de que não há outra solução.”
Como explica um dos entrevistados do filme, o governo americano dava autorização a algumas agências de viagem para que pudessem conceder isenção de visto para crianças e adolescentes de Cuba.
“É preciso levar em conta que o público-alvo dessa operação eram as famílias de classe média e alta, que perderam rapidamente grande parte de seus privilégios após a Revolução Cubana. Para alguns, foi uma mudança drástica demais nas condições de vida que eles não podiam aceitar”, diz a diretora.
Ainda segundo ela, “as únicas opções eram apoiar a contrarrevolução e esperar uma volta do regime anterior com o apoio dos EUA —e mandar os filhos ao exterior para esperar por isso em segurança— ou deixar o país, o que muitos resolveram fazer, não sem enfrentar dificuldades financeiras e burocráticas”.
“O novo regime cubano não permitia que esses exilados retornassem, então essa era uma decisão sem volta.”
Após desembarcarem nos EUA, as crianças eram enviadas a acampamentos, onde ficavam sob a guarda de representantes da Igreja Católica de Miami. Depois, costumavam ser entregues para a tutela provisória de famílias americanas —não raro trocavam de casa três, quatro vezes.
Vieram à tona casos de abusos ao longo dessas transições, como conta Sylvia Correa, que deixou Havana com 9 anos e só reencontrou seus pais sete anos depois.
O cubano Tomás Regalado, que se tornaria prefeito de Miami décadas mais tarde, voltou a ver seu pai 20 anos depois da despedida em Havana.
Com tantos lances de drama, suspense e mistério, a Operação Pedro Pan rendeu dezenas de livros e filmes nos dois países.
De modo geral, essas obras assumem um lado, sem rodeios. São pró-Cuba, atribuindo ao governo americano um suposto sequestro das crianças de Havana, ou claramente favoráveis aos EUA, dando aos padres e outros organizadores dessa operação o status de heróis que salvaram crianças ameaçadas pelo comunismo.
O filme da produtora paulistana Grifa procura fugir de leituras maniqueístas.“Quando começamos a estruturar o documentário, havia uma grande tentação de contrapor os argumentos desses dois lados. Os personagens entrevistados têm opiniões muito claras sobre isso. Mas escolhemos não enfatizar a polarização e, sim, as experiências pessoais dentro de um contexto histórico”, afirma Zanatta.
“A ideia era não levar o espectador a escolher um lado, mas se comover com os diferentes depoimentos e refletir sobre como disputas geopolíticas e ideológicas podem provocar dramas pessoais.”
Da primeira sinopse ao lançamento de “Operação Pedro Pan”, entre idas e vindas da produção, passaram-se cinco anos. O filme chega à TV justamente num momento em que o fantasma do comunismo assombra discursos de políticos conservadores tanto no Brasil quanto nos EUA.
No entanto, de acordo com diretora, é preciso muito cuidado ao cotejar esse dois períodos históricos.
Na visão dela, existem semelhanças na disseminação de boatos como estratégia política. Ao longo do documentário, aparecem menções à rádio Swan, um braço importante da mídia contrarrevolucionária financiada pela CIA.
“A Swan espalhava fake news cuidadosamente planejadas para jogar a população cubana contra o governo revolucionário”, diz ela.
Por outro lado, também de acordo com a diretora, há grandes diferenças entre os anos 1960 e a atualidade.
“Durante a Guerra Fria, o sistema comunista estava sendo experimentado em diversos países. Os boatos criados em cima da ‘ameaça comunista’ era muitas vezes versões delirantes da realidade efetiva dos países comunistas. Mas havia um referencial concreto do que podia ser o comunismo”, diz Kenya.
“No caso das famílias envolvidas na Operação Pedro Pan, é inegável que elas estavam sentindo em seu cotidiano mudanças drásticas devido a políticas cada vez mais identificadas com o ideário marxista. Independentemente da opinião que se tenha sobre a Revolução Cubana, é claro que elas estavam muito mais suscetíveis de acreditar em boatos fantasiosos. A própria campanha pela alfabetização de 1961, que levou adolescentes das cidades para alfabetizar camponeses na zona rural, era aos olhos dessas famílias uma prova de que o governo revolucionário seria capaz de retirar delas o pátrio poder”, afirma a diretora.
Ela continua: “Hoje em dia me parece que o comunismo é uma espécie de fantasma tirado do baú para assustar a opinião pública, mas sem nenhum referencial concreto”.

OPERAÇÃO PEDRO PAN
Quando: sábado (18), às 2h30 e às 15h; domingo (19), às 22h30; segunda (20), às 16h30; terça (21), às 10h30
Onde: Canal Curta!
Classificação: 14 anos
Direção: Kenya Zanatta e Mauricio Dias

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