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Peça 'O Peso do Pássaro Morto' mostra solidão de uma mulher silenciada

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Escrito por uma autora até então desconhecida, e publicado por uma casa independente, o sucesso do romance “O Peso do Pássaro Morto” pegou de surpresa o meio editorial ao ser lançado, há dois anos.
A obra rendeu à sua escritora, Aline Bei, o Prêmio São Paulo na categoria de estreantes com menos de 40 anos. Hoje é o mais vendido da editora Nós -foram mais de 21 mil exemplares comercializados.
Questionado sobre o que pode explicar esse sucesso todo, o diretor teatral Nelson Baskerville dá seu pitaco. “É um livro aparentemente inofensivo. Parece que você vai ler uma coisinha leve e, quando vê, está na página 30, 40”, responde, comparando a experiência a entrar no mar numa praia de tombo.
Baskerville dirige uma peça de teatro virtual baseada no livro, em cartaz desde a semana passada. Nela, a atriz Helena Cerello, idealizadora do projeto, encarna uma personagem sem nome, da infância à maturidade.
Seu caminho é pontuado por perdas. Das primeiras mortes que testemunha à desilusão do primeiro amor, que termina numa traumática cena de estupro. Da solidão da vida adulta à redescoberta do afeto, na forma de um cachorro vira-lata.
Na tela, Cerello se desdobra entre essas muitas facetas da protagonista e os personagens que a cercam, se valendo de jogos com a câmera que ela mesma opera e de modulações na voz.
Ela ora aparece ao vivo, ora em cenas pré-gravadas -diretor e atriz contam que, por mais que tenham tentado encenar o espetáculo inteiro em sequência, alguns momentos da narrativa exigiam operações complicadas demais.
Tudo, no entanto, é transmitido de um mesmo local, a fazenda no interior de São Paulo onde Cerello passa a quarentena com a família. Baskerville dirigiu tudo à distância, do seu apartamento na capital.
O ambiente rural, aliás, acabou intervindo bastante na composição da peça, conta o diretor. “Uma das coisas que estou experimentando nessa coisa online é um ‘ao vivo’ que nunca tive no teatro. Acabamos incorporando os acidentes que aconteceram, e foram muitos. Eletrônicos e, no caso da Helena, da natureza, que também tem voz”, afirma Baskerville, listando de apagões a figurações do vento e das nuvens que de tão poéticos pareciam ter sido planejados.
Já o texto do espetáculo é o mais fiel possível ao do romance original, quebrado em versos. Ao ponto de que, conta Cerello, quando ela improvisava uma frase nos ensaios, o diretor imediatamente chamava a sua atenção.
“É que a palavra é o maior trunfo”, justifica Baskerville, acrescentando que a própria autora do livro faz uma participação no espetáculo. “Se tem uma coisa que, no teatro, você não erra é em seguir a ideia do autor.”
Uma ideia que, ao tratar de temas como a solidão, não poderia ser mais relevante hoje, na pandemia, diz Cerello.
Foi isso, aliás, que a fez montar o espetáculo mesmo que longe do palco para o qual ele tinha sido idealizado. “Comecei a falar com amigos sobre tristeza, sobre perdas, e tinha uma frase [do livro] que ficava sempre, sobre a pessoa não querer coincidir com a dor de que é feita.”
Isso sem falar nas denúncias de violência doméstica contra mulheres, que aumentaram quase 20% no primeiro mês da pandemia só em São Paulo, outro tema abordado na narrativa, prossegue Cerello.
“Pensava como a grande questão [dessa personagem] é que ela não foi ouvida nem quando criança, nem quando adolescente. E falava: não tem como não contar a história agora. Precisamos fazer isso para que elas não repitam.”

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