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ESPECIAL-Família brasileira vive tragédia da Covid-19 à espera de vacina

Por Stephen Eisenhammer

SÃO PAULO (Reuters) – Ana Coelho da Cunha levantou cedo na última quarta-feira de fevereiro, vestiu uma roupa chique e se borrifou com o perfume favorito. Era um dia especial: a idosa de 85 anos seria vacinada.

Alívio se espalhou pela unida família brasileira da matriarca, que havia esperado meses pela vacina, assistindo, com inveja, a nações mais ricas lançarem campanhas de imunização, enquanto seu país sofria com atrasos em sua vacinação. Pela primeira vez em um ano de pandemia, seus 10 filhos e 22 netos conseguiam ver a luz no fim do túnel: o fim do distanciamento forçado, dos banquetes de feijoada cancelados, do medo constante.

“Todo mundo ficou tão animado”, disse a neta Lidiane, praticamente criada pela “Dona” Ana – como todos chamam a geniosa octagenária. “Parecia que as coisas estavam prestes a mudar”.

No entanto, o destino da família Cunha mostra em detalhes assustadores o perigo ainda enfrentado por quem vive no mundo em desenvolvimento, onde vacinas – ou a matéria-prima para produzi-las – estão chegando a conta-gotas a países que ainda precisam lidar com um vírus violento.

Dona Ana, viúva, exigia trato constante. Quatro dos seus filhos cuidavam dela, alternando-se na grande casa amarela e branca que a família construiu meio século atrás nos subúrbios de Belo Horizonte.

Tentaram contratar uma enfermeira, mas ela recusou. Queria que a família ficasse próxima.

A preocupação cresceu com a onda ascendente de infecções no Brasil, que se tornou o país com a epidemia mais mortal depois dos Estados Unidos, e que nos últimos meses tem sido afetado por uma nova variante altamente transmissível que tem cada vez mais atingido as jovens gerações brasileiras.

Mas finalmente Dona Ana recebeu a vacina desenvolvida na China, CoronaVac, uma das duas dominantes no Brasil. Após receber a dose, ela agradeceu a Deus.

Naquela noite, em um grupo da família no WhatsApp, outra neta perguntou sobre a “poderosa e vacinada” Dona Ana. Seu filho mais velho, José Gonçalves, respondeu que ela estava “bem, feliz por ter sido vacinada”.

Dois dias depois, a segunda filha mais velha de Dona Ana, Ivanilda, estava na casa da mãe fazendo faxina. Fazia um frio incomum e, ao terminar, ela tossiu.

A mulher de 64 anos não deu muita importância. Atribuiu ao tempo frio e à poeira da casa – ela sempre sofreu com alergias. Passou o fim de semana com a mãe e a entregou aos cuidados do irmão mais velho José Gonçalves na segunda-feira seguinte.

FALTA DE VACINAS

Em países ricos como Reino Unido, Estados Unidos e Israel, multidões de recém-vacinados estão comemorando a liberdade que redescobriram com churrascos e jogos de futebol, imaginando quando devem receber uma dose de reforço.

Mas no Brasil, a Covid-19 segue avançando, com mais de 500.000 mortos.

Menos de 12% dos brasileiros estão completamente imunizados, com cerca de 30% tendo recebido a primeira dose. Ao redor da América Latina, que agora representa quase metade das mortes diárias por coronavírus ao redor do mundo, a proporção de vacinados é ainda menor.

Outras partes do mundo também estão sofrendo, mais notavelmente a Índia, onde aproximadamente 17% da população recebeu a primeira dose, em meio a um ataque terrível de outra variante.

Na casa dos 80 anos em uma população relativamente jovem, Dona Ana estava perto da frente da fila, mas sua dose ainda foi aplicada quase três meses depois de o Reino Unido iniciar sua campanha de vacinação.

Cidades brasileiras foram forçadas a interromper suas vacinações pela falta de vacinas, com atrasos de envios de insumos da China.

À medida em que a variante se consolidava no Brasil, Lidiane assistia impotente de sua casa no Canadá, com uma conversa com seu marido cada vez mais latente em sua cabeça.

“Se um deles pegar, vai se espalhar e será uma tragédia”, ela se lembra de ele ter alertado.

“E foi exatamente o que aconteceu”.

UMA TOSSINHA

O vírus invadiu a casa dos Cunha da mesma maneira que tantas vezes o fez ao redor do mundo, disfarçado de algo mundano.

Naquele dia no fim de fevereiro, Ivanilda culpou a mudança do tempo pela sua indisposição.

“Simplesmente não me ocorreu que pudesse ser…”, afirmou Ivanilda, antes de se dispersar, deixando o vírus por dizer.

Ao longo do fim de semana na casa de sua mãe, a tosse piorou e ela teve uma baixa febre, mas permaneceu convicta de que não era nada mais do que uma gripe comum – e disse isso a sua família. Entre cuidar da mãe e ficar em casa, ela mal havia ido à rua em meses.

Na segunda-feira, José Gonçalves, 67, assumiu os cuidados e Ivanilda foi para casa. Na residência de Dona Ana, os irmãos compartilhavam o mesmo quarto, entre idas e vindas para cuidar da mãe. Não foi diferente naquela vez, e José Gonçalves dormiu na mesma cama que a irmã mais nova havia acabado de usar. Ele cuidou da mãe, como fazia há muitos anos. Filho mais velho, grande parte do fardo recaiu sobre seus ombros magros, mas robustos.

Na manhã de quarta-feira, após outro irmão ter aparecido para o próximo turno, José Gonçalves foi para casa. Sua esposa, Maria, lhe deu um abraço e um beijo quando ele passou pela pesada porta de madeira marrom, feliz que ele havia voltado.

Em poucas horas, tudo mudou. Ivanilda havia testado positivo para o coronavírus.

O resultado caiu sobre a família como uma espessa nuvem. Maria estava sentada no sofá da sala de estar, com a televisão ligada, quando o marido lhe contou.

“O que que Ivanilda foi fazer?”, lembra Maria, repetindo uma vez atrás da outra. “O que que ela foi fazer?”

No entanto, por um tempo, nada aconteceu. Ivanilda estava na cama, em casa, mas José Gonçalves se sentia completamente bem, a sua mãe também. Eles fizeram um teste apenas para ter certeza.

POSITIVO. Eles esperaram a doença chegar.

Ao redor do Brasil, uma brutal segunda onda estava em andamento, levando os hospitais à beira do colapso e lotando os cemitérios do país. Centros de tratamento intensivo estavam abarrotados de pacientes de todas as idades sofrendo para respirar.  

Em 11 de março, um dia depois de quando deveria receber a segunda dose, Dona Ana desabou em casa. Os médicos não vacinam quem já está infectado com o vírus porque é ineficaz, e a equipe médica lhe disse que ela teria que esperar algumas semanas até que a infecção passasse para receber a segunda dose.

Estudos entre o mundo real mostraram que a Coronavac é muito eficiente em prevenir internações e mortes duas semanas depois das duas doses serem aplicadas. Mas Dona Ana parece ter sido exposta ao vírus apenas alguns dias depois de ter recebido a primeira, o que provavelmente a deixou com uma proteção mínima.  

Um estudo preliminar publicado no Brasil no mês passado também mostrou que a vacina chinesa é menos eficaz contra a infecção sintomática em pessoas mais velhas, especialmente acima de 80 anos.

O instituto responsável pela produção da vacina no Brasil, o Butantan, emitiu um comunicado dizendo que era normal que estudos encontrassem diferentes eficácias e que os dados de mortalidade mostravam que a Coronavac estava salvando vidas entre a população idosa.

José Gonçalves, que havia ficado com a mãe após os dois testarem positivo, carregou-a ao carro e dirigiu para um hospital privado nas redondezas que aceitava o seu plano de saúde. O lugar estava sobrecarregado, e os enfermeiros lhe disseram que o hospital não poderia dar à sua mãe o nível de cuidado que ela precisava. Pediram que ele ficasse para ajudar. José Gonçalves ficou a noite inteira ao lado da mãe, sabendo que também era portador do vírus.

No dia seguinte, foi para casa. Sua filha Lidiane suspeita que ele já estava começando a se sentir doente, embora tenha lhe dito que estava bem. Em 14 de março, ele também foi levado ao hospital, com níveis perigosamente baixos de oxigênio no sangue. Rapidamente ficou claro que ele precisava de tratamento intensivo, mas não havia leitos disponíveis.

Os hospitais estavam tão sobrecarregados que estavam sem sedativos básicos necessários para facilitar a entrada dos pacientes aos ventiladores. Mas os médicos não tinham escolha e, em 15 de março, José Gonçalves foi intubado em uma unidade provisória.

Sua família passou os dias seguintes ligando para hospitais, lutando por um leito de UTI de verdade, porque sua saúde piorava. Seus rins davam sinais de falência. José Gonçalves teve mais sorte do que muitos. Em 18 de março, foi transferido para um leito completo de UTI em outro hospital. Seu plano de saúde privado fez com que conseguisse um leito enquanto muitos aguardavam e morriam na fila de espera.

Ivanilda também foi colocada em um ventilador, lutando pela vida. Para outros, a luz já estava se apagando.

Dona Ana morreu no domingo, 21 de março. Sua família ficou preocupada durante todo aquele dia, ligando várias vezes para o hospital em busca de notícias, com medo do silêncio. À noite, o hospital finalmente ligou, confirmando os temores. As suas últimas palavras, para um enfermeiro, em um lampejo de consciência, foi um pedido para ver sua família: “Quero morrer em casa”.

TRÊS GERAÇÕES ATINGIDAS

No Brasil, as famílias muitas vezes ocupam espaços onde não há Estado, seja uma carona para jogar futebol ou para a escola pela falta de transporte público ou cuidar um do outro por lacunas no sistema de saúde. Muitos brasileiros também preferem dessa maneira, o pessoal ao impessoal. Muitas gerações frequentemente moram na mesma casa ou separadas apenas por alguns quarteirões.

Os membros da família Cunha compreendem que a proximidade lhes custou caro. Mas muitos não veem como poderiam ter agido de outra maneira. Dona Ana recusou uma enfermeira particular. Ela precisava de cuidados; seus filhos não tiveram muita escolha além de ajudá-la.

Eles dizem que culpam muito mais a vacilante campanha de vacinação do país do que suas próprias falhas em manter o distanciamento social. Algumas semanas antes e Dona Ana teria sido completamente vacinada – potencialmente sendo salva e impedindo a progressão do vírus. Nos EUA ou no Reino Unido, Ivanilda e José Gonçalves também teriam sido vacinados antes que o vírus atingisse a família. Mas as inoculações foram interrompidas repetidas vezes no Brasil, com a taxa de vacinação caindo em maio, em comparação a abril, após atrasos em importações terem levado a uma escassez de doses. Cidades ao redor do país foram forçadas a adiar as segundas doses por causa do fornecimento baixo de vacinas.

O Ministério da Saúde não comentou a tragédia da família Cunha. Havia dito anteriormente à Reuters este mês que segue ampliando as vacinações.

No dia seguinte a José Gonçalves ser transferido à UTI, sua esposa, Maria, também foi levada ao hospital. A filha Regiane, 37, ficou ao seu lado, temendo pela sua mãe. Maria pediu que Regiane fosse embora, lembrando que ela tinha uma criança pequena que precisava dela, mas sua filha recusou.

“Mãe, não vou te abandonar”, lembra Maria, 65, ter ouvido de sua filha várias vezes.

Em outro ramo da família, um padrão similar se desenvolvia.

O teste positivo de Ivanilda chegou tarde demais para isolar e proteger seu marido, José Pedro. Após Ivanilda ser intubada, ele ficou mais doente, e sua filha, Erika, que vive no andar de baixo, cuidou dele, levando comida e remédios.

Erika, mulher de 40 anos e em forma, temeu pelos seus pais, mas não pensou muito em si mesma. Usou máscara e tentou manter a distância, mas, quando também testou positivo, mal se preocupou. Em um primeiro momento, usou a seu favor, se mudando para o andar de baixo para ficar mais próxima do seu pai. “Eu nunca tive problemas de saúde. Imaginei que passaria por isso tranquilamente”, disse.

Mas sua tosse ficou tão ruim que ela mal conseguia respirar. Seu pai já havia sido levado ao hospital e, alguns dias depois, Erika foi também. Em 25 de março, um dia depois de Erika ser internada, ela foi colocada em um ventilador. Seu pai morreu no mesmo dia.

Quando Erika acordou do coma induzido nove dias depois, ela não tinha ideia que seu pai estava morto. Com medo que a notícia prejudicasse sua recuperação, a família a omitiu por mais três semanas.

Os cientistas não sabem por que a variante parece estar atingindo os jovens com mais força. Alguns acreditam que é predominantemente devido a fatores comportamentais porque os mais jovens tomam menos precauções e, por isso, mais deles contraem o vírus. Mas cada vez mais os médicos brasileiros acreditam que há algo na composição da variante que está afetando os jovens mais do que a versão anterior do vírus que se espalhou pelo país ano passado.

A demografia das pessoas internadas em tratamento intensivo no Brasil mudou drasticamente. Em março, dados dos hospitais mostravam que, pela primeira vez, a maioria dos pacientes da UTI tinha 40 anos ou menos. O Ministério da Saúde também notou um risco maior em gestantes e aconselhou as mulheres a evitarem a gravidez no momento, se possível.

Enquanto mais membros da família eram internados, a condição de Maria melhorava. Os médicos chamavam sua resistência de “milagrosa”. Em 1º de abril, ela enviou uma mensagem à família pelo WhatsApp dizendo que teria alta no dia seguinte. Seus filhos enviaram mensagens alegres de volta, mas Regiane ficou em silêncio. “Aí eu já suspeitei que tinha alguma coisa errada”, disse Maria.

Dias antes, Regiane havia sido levada ao hospital com níveis perigosamente baixos de oxigênio. Ela estava acima do peso e sofria de trombose, mas sua família ficou chocada pelo dano que o vírus estava causando em alguém tão jovem. Maria, ainda se recuperando e respirando por oxigênio em casa, pediu que a família não compartilhasse notícias ruins com ela. Mas o silêncio, ela lembra, lhe disse tudo que ela não queria saber.

Em 3 de abril, seu marido, José Gonçalves, morreu de ataque cardíaco após quase três semanas no ventilador. O leito que a família havia conseguido para ele com tratamento intensivo o havia ajudado a viver mais, mas não fora suficiente. Eles dizem que ainda pensam se o resultado teria sido diferente se ele tivesse sido internado na UTI imediatamente.

Regiane resistiu por mais um mês. Mas, ao fim de abril, ela havia desenvolvido uma infecção generalizada e não estava mais respondendo a fortes antibióticos. Ela morreu em 1º de maio, a terceira geração da família a perder a vida para a Covid-19 em um intervalo de seis semanas.

Maria mal saiu à rua desde que voltou do hospital para uma casa vazia. Sua psicóloga recomendou que ela caminhasse, mas tem dificuldade para encontrar forças, paralisada pelo medo, ciente de que o vírus ainda está lá fora.

Ivanilda ainda não passou uma noite em casa. Está ficando com a filha. Ela diz que também está com medo das memórias que virão quando estiver sozinha. Ela questiona como Deus permitiu que isso acontecesse.

Ela pediu desculpas à família.

“Aquela vez que eu peguei, o pessoal pegou também, dá a impressão que foi causado por mim, começou por mim”. Sua cabeça gira em torno das possibilidades de onde pode ter contraído o vírus. Talvez quando levou o marido ao hospital para um checkup, talvez por meio de um vizinho.

Ela perdeu o marido, o irmão, a sobrinha e a mãe. “Minha mãe era tudo para mim”, disse. “Ela era tudo para mim e continua sendo tudo”.

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