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‘Queria falar no hospital, mas tinha rapazes, sei que tem deboche’, diz trans estuprada em MS

CAMPO GRANDE, MS (FOLHAPRESS) – Quando foi procurar ajuda médica, com fortes dores e sangramento no ânus, Camila Ferreira, 54, não teve coragem de contar o que havia acontecido. Mulher transexual vítima de sequestro e estupro coletivo em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, a vergonha que sentiu foi maior que o sofrimento físico.

“Eu queria falar, mas tinha o doutor, as atendentes, uns rapazes, tinha outras pessoas, dá vergonha. E ainda mais do jeito que a gente é, eu, assim, você sabe que tem deboche, né?”, disse Camila, em entrevista à reportagem. Ela se refere ao fato de ser mulher trans e às circunstâncias do estupro: foi espancada, imobilizada e obrigada a praticar sexo com um cachorro.

O caso aconteceu no dia 17 de junho e está sob investigação na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), sendo mantido em sigilo pela delegada Bárbara Camargo Alves. O inquérito foi aberto como sequestro, estupro coletivo e injúria racial, o último como motivação homofóbica, um tipo de injúria qualificada.

Camila recebeu alta no dia 13 de julho, depois de 19 dias de internação no HU (Hospital Universitário), onde passou por duas cirurgias, a de reconstrução do reto e outra para drenagem de abscesso. Agora, se recupera na casa de amigos. “As pernas estão bambas, sinto moleza, caminho pouco e já sento, não consigo andar muito ainda.”

Só na sexta-feira (16) resolveu falar sobre o episódio traumático. Camila voltava do mercado e já estava perto de casa, na Vila Sobrinho, quando um carro parou ao seu lado. “O motorista falou ‘Olha ela aí’ e eu parei para ver, porque achei que pudesse ser alguém conhecido”, conta. Os dois estavam com máscaras e bonés.

O homem que estava no banco do passageiro saiu e foi em direção a ela. “Aí eu me assustei, não reconheci e só não corri porque fiquei com medo de me alcançar e querer me bater ainda mais, não sei.”

De acordo com Camila, o motorista não se manifestou, mas o homem, em pé ao seu lado, perguntava se ela gostava de sexo anal e dizia que agora ela ia ver o que era bom. Assustada, só respondeu que queria ir para casa.

“Eu tentei ir embora, mas levei um tapa na cara, caí de joelhos e não consegui levantar.” Neste momento, o homem abriu a porta traseira do passageiro e deu chute em Camila, fazendo com que ela entrasse no carro.

Durante todo o trajeto, segundo relato dela, foi abaixada, sem poder ver para onde ia. “Me deu medo, pânico mesmo, pensava: ‘O que eles vão fazer, será que vão me matar?’. Na nossa classe, tem mil e uma violências, são coisas que jamais vou esquecer na minha vida.”

Depois de um tempo, percebeu que o carro parou, ouviu barulho de portão de correr e o veículo foi colocado dentro de uma garagem.

“Cada um me segurou em um braço, tamparam o meu rosto e aí começou a pior parte, que não gosto nem de lembrar”, disse. Camila não sabe por quanto tempo foi agredida e estuprada.

Depois das agressões, foi colocada novamente dentro do carro e deixada perto de um cemitério, no mesmo bairro em que mora. Lembra-se de que o caminho de volta foi doloroso e silencioso. “Era rua sem movimento, acho que ainda era hora do almoço. Eu nem pensei em pedir ajuda, só queria chegar em casa.”

Camila contou que foi ao banheiro e lavou os ferimentos. Na lavagem com água, se lembrou de receita antiga. “Peguei café com açúcar e fui colocando. Na minha mente, tinha que isso estancava o sangue e aliviava a dor.”

Depois disso, colocou dois shorts e foi até a academia de ginástica pedir ajuda para procurar o médico. Ela mora no anexo do local e paga o aluguel com prestação de serviços gerais.

A dona da academia a levou até a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) da Vila Almeida. À médica, disse apenas que havia se machucado em uma relação sexual consensual. “No meu pensamento ela ia dar remédio e eu ia melhorar, não queria falar, ainda mais para ninguém ficar debochando, falando mal da gente.”

Camila diz que a médica perguntou como ela poderia ter se machucado daquela maneira em relação consensual, mas Camila manteve a história. Foi encaminhada para o Pronto-Socorro da Santa Casa para lavagem, recebeu receita de anti-inflamatório e foi para casa.

Por uma semana, ficou sozinha em casa, aguentando as dores. Na sexta-feira (24), piorou. “Deitei no sofá e não consegui mais levantar, aí fiquei desesperada e liguei para a Jéssica”, conta, referindo-se à amiga de confiança. Mesmo para ela, não relatou o estupro.

Ela passou o dia na casa de Jéssica e somente à noite, quando a dor ficou insuportável, falou sobre o estupro.

Novamente foi à UPA Vila Almeida e, dessa vez, com conhecimento do ocorrido, a Polícia Civil foi acionada. “Até levei bronca do doutor, ele disse que se tivesse contado antes, não ficaria tão grave, mas aí eu falei: ‘doutor, se ponha na minha situação’.”

Enquanto se recupera fisicamente, Camila tenta entender o que passou. “Acho que agora tenho esse trauma dentro de mim, não sei se é essa palavra que usa, se é susto, só Deus sabe de mim agora.” Acredita que talvez a violência possa ter relação com o Dia do Orgulho LGBTQIA+ , celebrado em junho.

Hoje, diz que tem medo de voltar para casa e encontrar os agressores novamente. “Eu também tenho ódio, muito ódio. Eu procuro viver minha vida, aí, aparece essa gente não sei de onde e estraga a vida da gente, nunca pensei em passar, na minha idade, por toda a dor que passei, poxa vida.”

Embora trabalhe atualmente como auxiliar, o trabalho do coração dela é no Carnaval, na confecção de fantasias, função que exerceu durante anos nas festas de Corumbá e Campo Grande e que foi prejudicada com a pandemia. “Minha vida era essa, mas eu espero que volte com a vacina, vou esperar o fim do ano, ver se vai ter Carnaval, e aí pensar na fantasia, é a minha paixão.”

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