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Jô Soares subverteu a história com comédia em livros best-sellers

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Aos 57 anos, Jô Soares, morto nesta sexta-feira (5), já tinha no currículo mais reinvenções de carreira do que parecia possível. Decidiu fazer de novo. Virou romancista, um sonho antigo, e não foi de qualquer jeito.

“O Xangô de Baker Street”, que unia a paixão de Jô pela literatura policial, a fineza de sua erudição e seu tino inigualável para o humor, decolou feito foguete nas listas de mais vendidos e fez circularem mais de 350 mil cópias e dez edições menos de um ano após seu lançamento.

Dá para entender. Livros de nomes ultrapopulares de outras áreas sempre foram caça-níqueis do mercado editorial —a diferença é que hoje eles são chamados de influenciadores—, mas ali havia de fato talento e uma premissa saborosa. O detetive mais famoso do mundo, Sherlock Holmes, caía na gandaia de um Brasil pré-republicano enquanto buscava um violino desaparecido.

Com uma sinopse dessas —um thriller fiel à tradição que servia também como convite aos exotismos da terra brasilis—, o livro viajou fácil para além-mar. Para se ter uma ideia da proporção, a tradução norte-americana foi vendida por cifras comparáveis a Paulo Coelho e Jorge Amado. Não há hipérbole maior no mercado.

A partir daí, pouco se mexeu nesse time. Jô se especializou em tramas com raízes históricas que reinventavam personagens, brincavam com cânones e reviravam o pó dos documentos oficiais para encontrar piada, como quem subverte a verdade para seu bel-prazer —e do público.

Até onde se sabe, Sherlock Holmes não existiu, mas já naquele “Xangô” circulavam a atriz Sarah Bernhardt, espécie de Meryl Streep de seu tempo, e um séquito de puxa-sacos reais do imperador.

Em seu livro seguinte, “O Homem que Matou Getúlio Vargas”, Jô já mentia no título e dobrou a aposta com décadas de desventuras de um assassino trapalhão por alguns dos principais acontecimentos do século 20, da Primeira Guerra Mundial à era do proibicionismo americano, passando pelo velho Estado Novo.

Então, em “Assassinatos na Academia Brasileira de Letras”, o humorista enfia o nariz direto no cânone literário —do qual nunca pretendeu fazer parte, mas galhofa— e decide matar os imortais um a um. Com todo o respeito.

A produção de thrillers se encerrou com “As Esganadas”, sobre um serial killer que ataca mulheres obesas, contado com mesma despretensão que Jô sempre dedicou a esse assunto —talvez o romance tenha feito barulho mais discreto por ter saído enquanto a gordofobia ganhava relevo como pauta política.

Haveria mais um. Incansável aos 84 anos, Jô trabalhava numa trama rocambolesca de crimes ocorridos num prédio de São Paulo —cidade que amava, com um apartamento xodó na avenida Higienópolis— e que havia imaginado antes mesmo do sucesso televisivo “Only Murders in the Building”, de trama similar.

Se Jô Soares não deve nada em relevância a Steve Martin, que dominava os mesmos palcos em outra língua, também compartilhou com ele a habilidade em colocar a comédia na página.

Antes de se atirar no romance, já havia publicado o descompromissado “O Astronauta sem Regime” pela L&PM e as coletâneas “Humor nos Tempos do Collor”, com os feras Millôr Fernandes e Luís Fernando Veríssimo, e “A Copa que Ninguém Viu e a que Não Queremos Lembrar”, com os jornalistas Roberto Muylaert e Armando Nogueira.

Terminou a carreira escrevendo sobre algo que conhecia muito bem —ele mesmo.

Em parceria com Matinas Suzuki Jr., diretor da mesma Companhia das Letras que o alçou a best-seller, escreveu dois volumes de memórias que refestelam como um banquete oferecido por alguém que viveu à fartura e conheceu praticamente todo mundo que importava.

Ficou amigo, por exemplo, de Rubem Fonseca. Talvez nosso contista mais afiado, era sempre citado por Jô como um de seus maiores incentivadores na literatura. E um revisor severo.

Numa entrevista a este jornal pelo lançamento do “Xangô de Baker Street”, o humorista lembrou que costumava ouvir do amigo conselhos como, “isso aqui está muito engraçado, mas não cabe no livro”. “Vamos ter que tirar.”

Jô acatava. Era uma piada a menos, mas não tinha problema —essa era apenas uma de suas mil facetas.

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