Últimas Notícias

Listar autoridades uma a uma em eventos oficiais vem da ditadura e vira capital político

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Antes de ir direto ao ponto, todo evento oficial é precedido por um potencial catalisador de bocejos.

A leitura das nominatas (lista com as autoridades presentes), muitas vezes em tom monocórdio, podem abocanhar alguns minutos iniciais dessas cerimônias e levantar dúvidas sobre a necessidade de manter uma praxe protocolar regulamentada por um decreto de mais de meio século atrás.

Há, por outro lado, um valor político na formalidade, segundo quem circula em Brasília nas tribunas ou nos bastidores.

“Quando você cita alguém, é sinal de prestígio. Isso tem relevância, é por isso que fazem. É aquele velho ditado: quem não é visto, não é lembrado”, diz o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que liderou a bancada evangélica em 2022 e hoje ocupa a 2ª Vice-Presidência da Câmara.

O decreto que aprovou as normas de cerimoniais públicos, que abrange a ordem de importância de autoridades, foi sancionado em 1972 por Emílio Garrastazu Médici, um dos generais que presidiu o Brasil durante a ditadura militar.

O texto institui uma hierarquia entre os convidados. Cerimonialistas, que são os principais responsáveis pela organização de um evento, ganharam um critério para dispor os presentes nas mesas solenes e nas citações que abrem o discurso oficial.

Presidente e vice-presidente encabeçam esse rol, seguidos imediatamente por cardeais –reverência a um Brasil que, à época, era quase que integralmente católico.

A redação estabelece que esses figurões eclesiásticos, “possíveis sucessores do papa, têm situação correspondente à dos príncipes herdeiros”. São reconhecidas ali outras dezenas de personagens públicas, do tenente-brigadeiro a membros da ABL (Academia Brasileira de Letras).

“Nominatas têm a função de anúncio, identificação, reconhecimento e destaque. Dessa forma, fica evidente a relevância política delas. Cartões que vierem com quaisquer equívocos podem causar grande desconforto”, afirma Ana Tereza Lyra Campos Meirelles, a chefe de cerimonial da Presidência do Senado.

Advogada com título de expert em cerimonial e protocolo pela espanhola Universidade de Oviedo, foi ela quem organizou a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Congresso, no primeiro dia de 2023.

A origem dessa escala de importância é o mesmo decreto que estipula regras até hoje aplicadas para a posse do chefe do Executivo, que não era eleito pela população naqueles tempos, mas imposto pelas Forças Armadas.

Se as eleições indiretas caducaram, perduram até hoje as normas ali colocadas para organizar cerimônias oficiais –bússola para os outros Poderes, Judiciário e Legislativo, e para as esferas estadual e municipal.

“Não observo uma tentativa de modernização”, diz Ana Rosa Domingues dos Santos, professora do Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília. “Até porque, pelas próprias características do cerimonial, as regras tendem a ser um pouco mais voltadas à manutenção das tradições.”

Uma tradição que pode ser adaptada para servir à diplomacia do poder. Lula, com jogo de cintura político reconhecido até por opositores, é craque nisso.

Quando, em fevereiro, discursou em Maruim (SE), no evento que marcou a retomada de obras na BR-101, o petista saudou até as “companheiras” das autoridades presentes, além de prestigiar um aliado sem cargo oficial, Jackson Barreto, ex-governador de Sergipe.

Na mesma semana, demorou mais de cinco minutos na solenidade de relançamento do Minha Casa, Minha Vida em Santo Amaro (BA) para saudar 14 autoridades –do ministro Wellington Dias (Desenvolvimento e Assistência Social), “o índio mais famoso do Brasil”, à Marli Carrara, “companheira representante da União Nacional por Moradia Popular”. Explicou: “Falando com ela, estou cumprimentando todas as pessoas que participam do movimento de moradia pelo Brasil”.

O uso da nominata para cafunés políticos não deixa de ser, na avaliação da categoria, uma ferramenta para estreitar alianças.

Lembrar, digamos, do presidente do Congresso pode ser apenas uma formalidade como outras tantas, mas um prefeito do interior, por exemplo, talvez saia dali envaidecido, pensando em mil formas de como explorar a citação nominal do presidente da República.

Um tiro que, contudo, pode sair pela culatra. Um ex-cerimonialista que atuou nas bandas fluminenses lembra do dia em que uma autoridade, ao ler a nominata, “esqueceu” de registrar a presença do desafeto local –que deixou o evento antes do fim, esbravejando.

“Tem um quê de princípio da reciprocidade, ‘você prestigia meu evento, e eu prestigio sua presença'”, diz Ana Tereza Meirelles, a cerimonialista do Senado.

“Estou segura de que já ouviu em alguma solenidade, ‘fulano representando sicrano’, porque o importante é se fazer lembrado, presente de alguma forma. A ausência dessa lembrança pode gerar muito descontentamento. Já presenciei convidados se retirando do recinto em virtude de não terem sido mencionados.”

Premeditados ou não, improvisos acontecem. Mas cada esfera de poder, da universidade ao tribunal, costuma ter seu próprio manual do cerimonialista.

O do Governo do Distrito Federal traz dicas para agilizar um evento. Uma delas é encurtar o tempo gasto aludindo às autoridades que apareceram.

A apostila também sugere generalizar as menções, algo na linha “agradecemos a presença das autoridades militares”. O procedimento “evita embaraços e o risco de autoridades importantes não serem citadas”.

To Top