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Seca histórica castiga Argentina e intensifica a crise econômica

ZÁRATE, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – “Una porquería”, solta em bom espanhol o produtor Antonio Coarasa, 48, enquanto arranca sem dificuldades um punhado de gravetos da terra e mostra como eles se desfazem na mão. “Não servem para nada”, lamenta o empresário, cercado pelo que seria uma de suas produções de soja.

Os ramos deveriam bater quase no joelho, mas não chegam nem à canela. As longas fileiras da planta deveriam cobrir o campo de amarelo, mas só restaram galhos pretos. Toneladas de grãos já deveriam estar armazenadas nos tonéis, mas em muitas partes nem sequer haverá colheita.

Esse é o resultado de três anos com recorde de falta de chuvas na Argentina, combinado a fortes ondas de calor e geadas fora de época. A seca histórica agrava a crise econômica enfrentada pelo governo do peronista Alberto Fernández, tema que deve definir as eleições presidenciais do país, em outubro.

O presidente usou a imagem das plantações esturricadas como uma das justificativas para desistir de concorrer à reeleição, no mês passado: “A seca nos obriga a redesenhar todos os nossos objetivos, a nos dedicarmos exclusivamente a esse novo desafio”, disse ele no vídeo em que anunciou a decisão.

As chuvas começaram a minguar em 2020, quando o fenômeno La Niña provocou um resfriamento maciço das temperaturas do oceano Pacífico que só terminou em março deste ano. Como reflexo, houve um longo período de estiagem em toda a parte inferior da América do Sul, incluindo o Sul do Brasil.

A OMM (Organização Meteorológica Mundial) alertou que, embora esse seja um fenômeno natural, ele ocorreu em um “contexto de mudança climática causada pela atividade humana que aumenta as temperaturas globais, afeta os padrões sazonais de chuva e provoca temperaturas mais extremas”.

Na Argentina, as áreas afetadas são equivalentes a quase todo o Nordeste brasileiro, mesmo após uma trégua com o fim do La Niña. A falta de água é especialmente dura na “zona núcleo”, a divisa fértil entre as províncias de Buenos Aires, Santa Fé e Córdoba onde Coarasa cultiva milhares de hectares de terras.

“Fizemos poços de quatro metros de profundidade com máquinas numa lagoa que estava ali havia 60 anos e não encontramos absolutamente nada. Tem gente que diz que nunca viu nada igual”, afirma ele ao lado de grandes fardos cilíndricos de ervilhas secas em Zárate, a 90 km da capital.

A leguminosa, cuja safra foi ruim, será vendida como alimento para produtores de bois, que ficaram sem pasto e agora têm de pagar por comida. Mais de 21 milhões de cabeças de gado estão em risco, segundo relatório de março da Direção Nacional de Emergência e Risco Agropecuário.

“Muita gente vendeu suas vacas para frigoríficos porque elas estavam morrendo de fome. Entregaram animais fracos para abate, por um preço ruim”, diz Juan Pedro Malacalza, 31, outro produtor da região. Sem ter o que comer, as fêmeas não conseguem engravidar nem dar leite.

“A seca significa menos colheitas e menos caminhões transportando grãos ao porto, por exemplo. Há uma redução de toda a cadeia produtiva nas cidades pequenas e médias do interior”, afirma Cecilia Conde, chefe de estimativa agrícola da Bolsa de Cereais de Buenos Aires.

A exportação agropecuária é a principal fonte de dólares da Argentina, que sofre com a falta de reservas da moeda nos cofres públicos. Só a soja e o milho representam 40% dos dólares que entram no país.

Neste último ciclo, a produção ainda deve cair quase à metade, contribuindo para um prejuízo de US$ 14 bilhões (R$ 69 bilhões), de acordo com a Bolsa de Comércio de Rosário. O órgão projeta que, após décadas, a Argentina deve perder o posto de maior exportador mundial de farelo de soja para o Brasil.

“Houve uma mudança no fluxo das transações globais. Com a baixa na Argentina, os compradores se deslocaram para o Brasil [que teve safras recordes] e para os EUA”, afirma Lucilio Alves, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da escola de agricultura da USP (Esalq).

Internamente, a queda na produção leva os preços dos alimentos às alturas, e a diminuição das receitas piora o déficit fiscal. Também dificulta o pagamento do maior empréstimo já feito pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), de US$ 44 bilhões.

O país tem pedido ajuda a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para renegociar a dívida e acelerar desembolsos da organização, que dá indícios de que será mais flexível nas conversas devido aos impactos da seca.

Frente às incertezas, produtores como Antonio guardam como garantia toneladas de grãos em “chorizos”: bolsas gigantes de plástico em formato de linguiça. “Meu pai vendia e colocava o dinheiro no banco, mas depois do corralito [congelamento das contas pelo governo, em 2001] ninguém confia mais”, diz ele.

Para incentivar a venda desses estoques e a entrada de dólares, o governo introduziu no início de abril um novo “dólar agro” —a Argentina tem mais de 15 cotações, a depender do setor. Assim, por 45 dias, cada dólar obtido com a venda de soja renderia 300 pesos, não os 210 oficiais da época. “Foi a terceira vez que o governo fez isso. Em setembro e dezembro teve muito êxito, mas neste ano não, porque os produtores falam: por que vender se vai desvalorizar?”, diz Sebastián Gavaldá, diretor da consultoria Globaltecnos.

Os efeitos limitados das medidas implantadas, somadas a um imposto de 33% cobrado dos produtores pela exportação de soja e de 12% para milho e trigo, geram uma rejeição forte no campo a uma candidatura governista em outubro.

“Existem mais de 250 mil produtores agropecuários na Argentina. Acho que uns 80% ou 90% vão votar na oposição”, aposta o produtor Malacalza, que pretende apoiar o ultraliberal Javier Milei.

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