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‘Há coisas sobre mim que descubro em cena’, diz Maeve Jinkings, destaque na série ‘Os outros’

Quando Caetano Veloso definiu Maeve Jinkings como “extraordinariamente sexy” em um texto sobre o filme “O som ao redor” (2013), mal sabia ele o turbilhão que estava provocando dentro dela. De cara, nem a atriz de 46 anos teve consciência plena dos motivos pelos quais aquela frase havia lhe deixado tão “morta de vergonha”.

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Só anos depois de ter vivido a dona de casa que fuma um baseado com um aspirador de pó e se masturba com uma máquina de lavar no longa de Kleber Mendonça Filho que a ficha caiu completamente. Foi em meio à preparação para interpretar a “hipererotizada” Jaqueline do longa “Amor, plástico e barulho” (2015) que ela se deu conta da origem do incômodo: o próprio preconceito.

É que Maeve passou parte da vida tentando abafar seus códigos eróticos. Para ela, sexy era ser inteligente, culta. Resultado da postura defensiva que adotou ao crescer sendo assediada na rua. E fez brotar nela a ideia de que ser sensual era um problema. Foi necessário desconstruir esse imaginário para que conseguisse acessar a própria sensualidade e, assim, dar veracidade à cantora que usava o capital erótico para exercer o seu poder. Este percurso foi transformador para a atriz.

— Entendi ali que ainda que seja legítimo continuar desejando aquelas coisas, erotismo é algo foda, poderoso e lindo. Sempre fui livre sexualmente e não preciso levar isso para a minha vida pública. Mas não se tratava disso. E sim, de como eu estava deixando o olhar do outro determinar a forma como eu agia — elabora.

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Em camadas

A partir daí, também percebeu que trabalho bom é aquele que a coloca diante da própria ignorância. Em “Boi neon” (de Gabriel Mascaro, 2015), por exemplo, se viu dando tintas masculinas a personagem Galega só porque ela dirigia um caminhão. Deu tempo, ainda bem, de fugir da armadilha do estereótipo.

Também precisou calibrar a vitimização que, de início, aplicou em Mila, a cabeleireira que sofre violência do marido (Milhem Cortaz) em “Os outros”, de Lucas Paraizo, dirigida por Luisa Lima, que está no ar no Globoplay e é hoje a série mais assistida da história da plataforma.

— Quando a gente pensa em violência doméstica, imagina uma caricatura de mulher. Mas isso está tão próximo da gente, de amigas fortes, instruídas. Entendi que era preciso complexificar o grau de submissão dela debaixo de uma camada de reação. Como se tivesse o tempo inteiro um conflito interno. Não era interessante colocá-la fragilzinha, coitadinha, mas entender qual era a dinâmica dela — explica Maeve.

A atriz faz um paralelo com a vulnerável Domingas, sua personagem na novela “A regra do jogo” (2016), da TV Globo, que apanhava do ex.

— Depois da Domingas, recusei alguns papéis que tratavam da mesma questão para não me repetir. Mas com a Mila achei interessante lidar com outra forma de violência, essa que vai tirando dela a energia, que a faz acreditar que é completamente dependente da estrutura familiar. Ela fez algum tipo de pacto com ela mesma para fingir que está fazendo alguma coisa. Qual é a cota dela? Onde a gente a implica?

Mila é mãe de um adolescente que entra em conflito com um menino de outra família. A briga leva os dois núcleos a consequências absurdas que escancaram intolerância e dificuldade de comunicação do mundo contemporâneo. A série também trouxe reflexões de outra ordem a Maeve.

— Acabamos de passar por uma tensão social grande com confinamento, pandemia, e um governo negacionista, com discurso de ódio. A série não é sobre os outros, mas sobre a gente. Nos faz pensar sobre a responsabilidade de cada um, mais do que apontar a culpa do outro. Tudo isso no microcosmo de um condomínio fechado, tão simbólico dessa falência do coletivo — analisa. — Esse condomínio é a ilusão de que a gente vai resolver nossa violência intrínseca separando, se protegendo, se trancando. Não consigo pensar isso sem tocar na lógica de algoritmo, que me faz conectar com quem pensa igual a mim e alimenta meus preconceitos, crenças e visão de mundo, a minha bolha. Hoje, estou interessada em escutar e olhar para quem é diferente de mim.

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Descascar camadas dos personagens que interpreta é especialidade de Maeve, segundo a diretora Luisa Lima, que já havia trabalhado com com a atriz na série “Onde nascem os fortes”.

— Ela gosta de elaborar o pensamento da dramaturgia do conceito da personagem junto com a direção, tem reflexões sempre valiosas. É uma atriz com muita verdade e recursos, capaz das mais diferentes voltagens — aponta Luisa, que vai além. — Maeve tem delicadeza e ousadia. Firmeza nas próprias ideias, mas também escuta. É estudiosa e seletiva com seus trabalhos, independentemente do mercado. Musa do cinema ganhando protagonismo na TV e no streaming. A compreensão política/social está sempre presente, junto com forte cultura literária e do pensamento contemporâneo. É danada demais, muito inteligente.

Não é à toa que a atriz se tornou conhecida por personagens intensas, com questões emocionais e existenciais. É uma consequência direta de sua personalidade existencialista, observadora (e um tanto misteriosa), que foge de papéis e narrativas rasas:

— Este nosso trabalho sempre nos faz descobrir algo novo sobre a gente mesmo. Espero a hora em que vou me ver no personagem. Cada intérprete ecoa sua história de vida, seu material humano e visão de mundo. Sabe uma grande bobagem que falam sobre atores? É que fingimos. Pelo contrário. Não posso me dar ao luxo de ter proteções egóicas que vão me livrar do olhar do outro. Ali é o lugar onde a gente está autorizado a ser mais verdadeiro.

Inclusive com si mesma, acredita Maeve.

— Tenho que me deixar a afetar, estar absolutamente presente. Acho uma perda de tempo se poupar. Porque nesse mundo em que a gente vai criando máscaras e adormecendo nosso sentidos, ficando sem tempo nem para escutar, esse ofício nos dá a chance de sentir. Há coisas sobre mim que descubro no meio de uma cena, é quase um processo psicanalítico.

No curta “Estátua!” (2014), de Gabriela Almeida, por exemplo, Maeve se deparou com o medo de se casar, possibilidade que se apresentava naquele seu momento de vida. Interpretava uma babá grávida e apreensiva e precisava demonstrar certo pavor no set. Trouxe, então, para o jogo cênico as próprias vivências. Sem filtro.

— Começaram a vir flashes de coisas que eu tinha medo e nem sabia. Tipo o medo da maternidade, que sempre desejei, mas adiei. Hoje estou em paz com a ideia de não ter tido. Sou maternal, mas também pragmática e nunca chegou o momento em que achei que estava disposta abrir mão de um pedaço da minha vida profissional. Sei que seria uma puta mãe, mas tem esse lado: “Mamãe precisa trabalhar. Talvez, mamãe veja você na próxima existência” — brinca.

O pânico de arma de fogo ela precisou trabalhar ao viver a policial Suellen na série inédita de Heitor Dhalia para a Netflix, “DNA do crime”.

— Fiquei paralisada na primeira aula de tiro. Até que atirei e, quando vi o resultado, falei: “Meu Deus, tenho talento.” Aí pensei: “Amanhã vou atirar melhor que esses boys.” Entendi que aquilo passava pela sensação de poder, pela minha vaidade. É quando a gente vê o seu eu convergindo com a personagem — observa ela.

Outro desafio foi dar densidade e profundidade à personagem, que volta ao trabalho após ter um filho, sem expressar tanto sentimento no rosto, já que a policial não deveria demonstrar vulnerabilidade.

— Ao mesmo tempo, tem uma pessoa ali atrás daquela máscara, né? E policiais sofrem, estão entre os maiores índices de suicídio, inclusive — afirma ela, que agora roda o novo filme de Walter Salles, “Ainda estou aqui” (baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva), na pele da socióloga Dalva Gasparian.

‘Não paro de descobrir novas facetas minhas’

A biografia de Maeve no Instagram a define como: “alguém que está tentando entender”. Até ela entender que era atriz levou um tempo. Filha de uma fotojornalista e um comerciante, Maeve nasceu em Brasília, cresceu em Belém em meio aos livros do avô (militante comunista preso na ditadura) e se formou em publicidade antes de partir rumo a São Paulo para estudar interpretação.

Bancou a formação em teatro (passou pelo Centro de Pesquisa Teatral, de Antunes Filho, e se formou na USP) trabalhando como garçonete e produtora cultural. Ao sentir que precisava ir em busca de novas oportunidades, abandonou o emprego fixo e terminou o casamento.

Por sorte e intuição, baixou em Recife quando uma leva de filmes importantes surgia por lá. Começava aí a trajetória de uma atriz que se tornou grande (e premiado) nome do cinema nacional. Maeve, aliás, é prenome irlandês, de origem celta, e o sobrenome Jinkings, do avô materno, o brasileiro Raimundo Jinkings, de origem escocesa.

Ela segue tentando entender. Mas tem algo que sempre soube: manter os pés no chão. Até demais. Tanto que teve “preguiça” de encarar o glamour do Festival de Cannes, onde apresentou “Aquarius”, em 2016. Precisou levar uma bronca de Sonia Braga para compreender o sentido daquela pompa toda:

— Eu estava passeando com a com a Sonia em Nova York e fomos fazer xixi no banheiro da Macy’s. De repente, ela vem olhando por baixo das portas das cabines me procurando. Era para dar a notícia de que íamos para Cannes com “Aquarius”. Começou a me mostrar fotos do tapete vermelho com aquele batalhão de fotógrafos e eu disse: “Que preguiça” — lembra. — Ela me deu uma bronca danada e passou um mês me mandando foto da Grace Kelly descendo a escadaria. “É assim que você tem que se sentir. A vida das pessoas é chata, elas querem fábula”, dizia ela, que na vida normal anda de calça baggy, cabelo preso, óculos, super simples, né? Achei o que ela falou lindo e aí entendi que aquele tapete vermelho era uma performance. Sabe, penso sempre que, ao cair na cilada de me achar especial, perco o manancial de onde tiro tudo, o contato com o que tem de mais precioso na vida.

A frase da bio no Insta também resume a sensação de Maeve ao se perceber apaixonada por uma mulher pela primeira vez. Há um ano, ela namora a cineasta Carolina Markowicz, com quem rodou “Carvão”:

— Não paro de descobrir novas facetas minhas. Me surpreendo com essa constatação durante toda minha vida toda. Somos muita coisa. Ter me apaixonado pela Carolina é uma dimensão disso. Aos 45 anos descobrir uma paixão por uma mulher é incrível.

Outros ângulos

No começo, foi difícil. Maeve precisou lidar com os próprios preconceitos.

— Foi confuso. É algo que te obriga a reavaliar a sua existência, quem você é. Você pensa: “Nossa, então tá. Mas como assim?”.

Foi quando ela leu um texto da antropóloga Paola Lins de Oliveira que, para fazer uma resenha de um livro, refletia sobre a hierarquia do desejo. “Quem determina o que é mais ou menos desejável?”, questionava ela, para, então, abordar a experiência pessoal de ter se apaixonado por uma mulher aos 34 anos. Aquilo a fez colocar em xeque toda sua vida amorosa até ali. Para Maeve, ler aquelas palavras foi poderoso. Mais que isso, foi “um divisor de águas”.

— Paola disse: “Me senti louca”. Pensei: “É isso que estou sentindo!”. Cada escolha que fiz, com custos e concessões, fiz em nome do que entendia ser o meu desejo, o meu chamado, o que me fazia feliz e não o que esperavam de mim. Um dos medos que mais tenho é perder a conexão com esse desejo — conta. — Porque é tão perverso as regras e caixinhas que nos colocam que, às vezes, acho que estou pilotando meu avião, mas vejo a mão de outra pessoa. Tipo um fantasma que de repente está guiando o seu desejo. Mas a sensação que tive é que se não vivesse aquilo…

Durante esse processo, Maeve fez um pacto consigo mesma: trata o relacionamento atual como sempre tratou os anteriores, com homens. Inclusive pelas redes sociais, onde ela busca naturalizar a relação sem expor tanto.

— Não vou postar nem mais nem menos. Assim como não vou demonstrar mais ou menos afeto socialmente. Dizer sim a esse desejo, vivê-lo de verdade, já é um ato político. Quando escolho não falar mais nem menos, tratar na mesma medida, também é um ato político, uma bandeira. Não quero fetichizar, transformar meu relacionamento num produto ou em isca para like. Porque tem isso: o sistema se apropria, absorve e faz disso uma moeda. E, na maioria das vezes, isso não gera nem debate porque as coisas mudam pouco — diz.

Maeve enfatiza, no entanto, que, para alguns, essa é uma luta de vida inteira. E que o fato de se expressar mais ou menos sobre o tema está ligado ao tipo de pressão ou violência a que pessoa foi submetida na vida.

— Muitos sofrem tanto que é necessário falar muito sobre o assunto. Respeito isso e acho que tem a ver com a história o desejo de cada um. Sempre fui empática à dor das pessoas que sofriam preconceito dessa natureza e quando a gente se vê do outro lado do espelho é outra dimensão. Mas descobri isso de uma forma tão natural e a maneira como me expresso é de acordo com a minha experiência.

A reação da família foi tranquila. Até porque, Maeve sequer deu brecha para que fosse de outra maneira.

— Foi surpreendente para a minha avó, que tem 90 anos. Mas quando você não permite, tira a mão do tal fantasma, você obriga o resto do tabuleiro a se reposicionar. Lembro que falei: ‘Olha, gente, não vai ser nem mais nem menos: lidem com isso”. Porque é isso, né? E se alguém tiver problema, posso indicar um psicanalista (risos).

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