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Peça que brinca com fama de má de Barbara Heliodora vira filme e reforça legado da temida crítica teatral

Tailleur rosa bem vovó, colar de pérolas, peruca branca e óculos de armação vintage. Um olhar de julgamento e aquela expressão severa, de quem não tem paciência com amadorismo. Assim ressurge Barbara Heleonora — uma versão ficcional de Barbara Heliodora, a mais temida crítica teatral de seu tempo. Durante décadas, a Barbara real assombrou dramaturgos, atores e outros profissionais do palco com suas críticas ferinas publicadas nas páginas do GLOBO. Já a personagem protagonizou a peça “Barbara não lhe adora”, uma comédia que rodou o país entre 1999 e 2010, foi publicada em livro e vai virar um filme homônimo, com estreia prevista para 2025.

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As gravações começaram em abril, trazendo de volta praticamente o mesmo elenco da peça — incluindo Ana Paula Botelho, que encarna a personagem-título. O roteiro segue a premissa original do autor Henrique Tavares. Após receber uma resenha negativa de Barbara, uma trupe mambembe sequestra a crítica e a submete à pior tortura que ela poderia receber: obrigá-la a assistir uma segunda apresentação do excruciante espetáculo, explicando cada detalhe da encenação. O preço do resgate é a publicação de uma nova crítica, agora positiva.

É impossível saber o que a verdadeira Barbara, falecida em 2015, aos 91 anos, pensaria do filme. Mas os seus sentimentos em relação à peça estão bem documentados. A professora, ensaísta, tradutora e crítica carioca não apenas compareceu a uma apresentação como ainda lhe dedicou um texto elogioso, mostrando que era capaz de rir de si mesma.

— No teatro carioca, todos temiam vê-la na plateia, porque sua crítica era capaz de determinar se um espetáculo teria ou não sucesso — lembra Ana Paula Botelho. — No nosso caso, a situação era ainda mais tensa. Na época, corria o boato de que ela pensava em processar a produção caso se sentisse difamada. Quando percebi que Barbara estava acompanhada de um amigo na plateia, pensei: “Ferrou, ela trouxe até advogado!” Mas no fim era só um amigo que sempre a acompanhava nas peças.

Jogo de espelhos

Ana Paula nunca encontrou pessoalmente a crítica teatral, preferindo compor a personagem a partir da caricatura que boa parte do mundo teatral fazia dela: a de uma senhora sisuda, professoral e exigente. A semelhança entre os figurinos da Barbara real e da Barbara ficcional, porém, gerou um bizarro jogo de espelhos na noite de estreia de “Barbara não lhe adora”.

— Em uma das cenas, o figurinista da peça dentro da peça se vinga das críticas ao seu trabalho e faz a sua própria resenha das roupas da cativa. Foi aí que olhei para Barbara rindo na plateia e percebi que estávamos muito iguais — lembra Ana Paula. — Ela tinha vindo praticamente com a mesma roupa da personagem.

As cenas de cativeiro do longa foram gravadas em abril, no Teatro Dulcina, de Brasília. Na última quarta-feira, o diretor do filme, Douro Moura, rodou uma das cenas externas, em que a trupe sequestra Barbara no Largo do Boticário, no Cosme Velho, Zona Sul do Rio. O endereço não foi escolhido por acaso: a crítica morou quase toda a sua vida em uma casa na esquina do largo.

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Temas universais

Do elenco original, voltam Alexandre Moreno, Antonio Fragoso, Flávia Fafiães e Charles Paraventi — o diretor que ensaia cada passo do sequestro como um grande espetáculo, só que quase sempre errando tudo. O filme traz personagens novos, como Ítalo Britto (interpretado por Welder Rodrigues, da companhia “Os melhores do mundo”), um clássico ator veterano envergonhado com uma crítica negativa de Barbara, e que vive escondido no teatro abandonado que serve de cativeiro. Trata-se de uma homenagem aos atores Ítalo Rossi e Sérgio Britto.

Para o público carioca, a história tem um interesse especial, já que traz uma figura reconhecível do teatro local e abusa das piadas internas. Mas o sucesso da peça em outras cidades provou que o texto independe do contexto, viabilizando uma adaptação audiovisual. Alguns dos temas do enredo são universais, como a necessidade de aprovação e a conflituosa relação entre autores e críticos.

— A Barbara era o estereótipo de uma crítica de teatro em qualquer parte do mundo, toda grande cidade tinha um crítico assim — diz Henrique Tavares, que teve a ideia para a peça após ter recebido uma resenha negativa de Barbara. — Encontrei o ator da minha peça chorando em frente ao espelho do camarim, por causa das palavras dela. Os nossos egos são muito frágeis no meio artístico. A peça foi uma forma de satirizar a nossa carência e megalomania.

‘Atuação facial’

Tavares destaca a interpretação de Ana Paula Botelho, que passa boa parte da peça e do filme amarrada e amordaçada, expressando-se apenas com o olhar.

— A atuação dela é toda facial — diz o autor. — A Ana Paula teve que capturar a essência da personagem apenas com olhares críticos e reações de impaciência. Fiquei muito feliz de ter mantido os mesmos atores da peça. Já havia recebido muitas propostas para adaptar o texto para o cinema, mas sempre recebendo a exigência de trocar o elenco. Eu queria manter esse espírito de gangue. Ninguém tinha dinheiro, a peça tinha essa coisa de cooperativa.

O filme se desenrola no mesmo período em que a peça estreou, com alguns elementos típicos. Na cena gravada no Largo do Boticário, o personagem de Charles Paraventi usa um celular “tijolo” bem vintage, daqueles com antena. Mas nada é mais anacrônico do que a própria figura do “grande crítico”, cada vez mais rara no mundo cultural.

— O tempo das coisas era outro, você tinha que esperar dias para ler a crítica no jornal — lembra Ana Paula. — Hoje a pessoa assiste e já está comentando nas redes. Não tem mais essa figura do especialista que critica, mas tem os haters da internet, que são muito piores do que a Barbara. Ela era a “hater oficial”, mas era apenas uma. Agora são vários.