X

Último filme dos Beatles, ‘Let it be’ estreia no streaming: ‘dá para ver o fim chegando’

Quando foi lançado, em 1970, “Let it be”, o derradeiro filme dos Beatles, foi recebido como uma espécie de canto do cisne da maior das bandas de rock — não por acaso: registrado em 1969, quando a banda compunha e ensaiava para o disco de mesmo nome, ele chegou aos cinemas pouco depois de os garotos de Liverpool anunciarem sua separação, mais de um ano depois. Com meio século de contexto em cima, é mais fácil ver “Let it be” — que chegou ao streaming, na Disney+, sem jamais ter sido lançado em DVD ou blu-ray — hoje em dia sob luzes diferentes.

— É um filme dos Beatles, é absurdo que estivesse inédito assim até hoje — avalia o pesquisador musical especializado no quarteto Marcelo Fróes, que se lembra de uma versão em VHS, no início da era do videocassete, e de um videolaser no Japão. — Passou no cinema aqui e na televisão, numa versão dublada, horrível.

Beatles: violão tocado por John Lennon em ‘Help!’ e perdido há 50 anos vai a leilão

Encontrado: baixo original de Paul McCartney é localizado após mais de 50 anos perdido; entenda

O filme foi restaurado pelo “Senhor dos Anéis” Peter Jackson, que fez o documentário “ The Beatles: Get back” (2021) a partir de horas de filmagem destinadas a “Let it be” pelo diretor americano Michael Lindsay-Hogg com um upgrade técnico em som e imagem. Em sua atual versão, “Let it be” tem detalhes antes imperceptíveis, até pelos especialistas.

— O áudio melhorou muito, a gente consegue ouvir diálogos que não se percebia no original — avalia Fróes.

O documentarista e beatlemaníaco Paulo Henrique Fontenelle, diretor de filmes como “Loki”, sobre Arnaldo Baptista, e “Cássia”, biografia de Cássia Eller, é mais um a louvar a atualização tecnológica.

— Além do som melhor, tem as legendas, para a gente entender o sotaque de Liverpool, que nem sempre é simples — diz ele. — E é uma alegria ver a imagem refeita, diferente daquela ruim do VHS, com as cores mais nítidas. Também acho legal ver como o filme tem uma luz diferente da de “Get back”, mais sombria, que é como o Michael Lindsay-Hogg o fez.

Comparações entre docs

Os dois diretores, Lindsay-Hogg, hoje com 84 anos (nascido em 1940, mesmo ano de John Lennon) e Peter Jackson, um jovem de 62, travam um rápido diálogo no começo da nova versão do filme, com muita cortesia e poucas comparações entre “The Beatles: Get back” (e seus 468 minutos, ou quase oito horas de duração) e “Let it be”, que surgiram neste século em ordem invertida.

— Acho que “Get back” esgota o assunto — opina Lulu Santos, que reviu “Let it be” (“Lembro-me muito bem da pessoa que eu era quando o vi no cinema”) e define o filme como “meio monstrengão”.

No que tem a concordância de Fontenelle:

— A montagem tem muitos problemas. Se você prestar atenção, vai ver como em alguns momentos os músicos tocam e cantam uma coisa, e o áudio traz outra.

Música de despedida dos Beatles: ‘Now and then’ justifica a espera de mais de 40 anos

Embora não estivesse ali para contar a história do fim dos Beatles, o diretor Lindsay-Hogg fez a edição em meio às brigas entre os Quatro Fabulosos.

Relacionadas

— O filme era para ter mais de duas horas, acabou com uma hora e vinte — diz Fontenelle. — O Lindsay-Hogg estava na moviola (antigo aparelho de edição analógica), montando, aparecia um deles lá e dizia: “Não quero essa parte, nem essa, nem essa”. Acabou cortando muito do filme, certamente um material que acabou em “Get back”.

Réquiem ou não, é certo que o clima entre Paul, John e George — ninguém reclama do sorridente Ringo — era pesado naquele momento, o que aparece mais em “Get back” do que em “Let it be”.

— Houve uma briga física, eles saíram na porrada — diz Fróes. — Isso não está nas imagens, mas em “Get back” há um diálogo ríspido, em áudio, apenas entre John e George, que era quem mais se ressentia da presença física de Yoko Ono nos ensaios e gravações. Eles sabiam onde estavam as câmeras, não brigariam na frente delas. O George Martin (1926-2016, lendário produtor dos Beatles) conta essa história de forma discreta em sua biografia.

Lulu Santos também contabiliza George como o mais infeliz dos Beatles naquele momento.

— É fácil ver como ele tinha um ressentimento, uma sensação de que jamais seria tão bom quanto os outros.

Depois da briga, o autor de “All things must pass” teria passado uma semana fora dos ensaios e gravações, e sua relação com John Lennon oscilou até o lendário “Concert for Bangladesh”, show beneficente para o país asiático organizado por ele em 1971, em Nova York.

— George convidou Lennon para participar e Lennon, claro, apareceu com a Yoko — conta Fróes. — George disse que o convidado era só o John, que ficou furioso e foi embora. Nunca mais eles se deram, até a morte de John, em 1980.

Presença de Yoko

Embora Fróes e Fontenelle prefiram ver o copo meio cheio e destacar os aspectos positivos de “Let it be”, com a linda cena em que Lennon e Yoko valsam ao som de “I me mine” e o lendário show no terraço do prédio da gravadora Apple, Lulu segue concordando com a teoria histórica: “Let it be” é a crônica de uma morte anunciada.

— Acho que está na cara que o fim estava chegando — diz ele, sem ver a vida melhor no futuro. — O bromance de Paul e John chegava ao fim, Paul quer cantar para as câmeras, fazer o trabalho combinado, e consegue, em canções maravilhosas como “Let it be” e “The long and winding road”, enquanto John está sempre sarcástico, em uma espécie de angústia existencial. Além da presença da Yoko, né? John havia sido criado por uma tia, Mimi; a mãe, Julia, deu a custódia dele. Acho que ele buscava uma mommy.

As relações estavam chegando ao fim, assim como a década, ressalta Lulu.

— Eles até tentam levar o Billy Preston, músico de rock negro americano, representante de tudo o que eles gostavam, ao estúdio, para ver se o comportamento melhorava, mas não deu — analisa ele. — Tem uma cena em que Paul fala com John e os olhos dos dois demoram a se encontrar. Acho até que nas drogas eles estavam em fases diferentes, como sugerem os olhinhos inchados de Paul, de maconha, e o rosto emaciado de John, possivelmente de heroína. Era o fim. Assim caminha a Humanidade, com passos de formiga e sem vontade.

Testemunha ocular da história, Ringo Starr contemporizou em uma entrevista ao site americano “The daily beast”: “Eu vivia resmungando sobre o filme, porque não havia alegria nele”, disse o baterista, hoje com 83 anos, “Mas na verdade foi apenas uma discussão entre Paul e George a respeito de um arranjo que acabou marcando tudo. Quatro caras no estúdio, essas coisas acontecem”.

Já aconteceram. Deixa estar, Ringo.