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Com gols em profusão, Italiano ainda carrega falso rótulo de defensivo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1994, o jornalista Simon Kuper, autor do livro-reportagem “Futebol Contra o Inimigo”, viajou à Itália para entrevistar Helenio Herrera, o técnico que levou a Inter de Milão (ITA) ao bicampeonato europeu nas temporadas 1963/1964 e 1964/1965.

Herrera, que nasceu na Argentina e morreu em 1997, é considerado o aperfeiçoador do “catenaccio”, sistema que tinha um líbero atrás dos zagueiros para manter a defesa sempre protegida. Uma evolução do ferrolho suíço exibido nas Copas do Mundo de 1938 e 1954.

“O catenaccio é muito criticado porque foi aplicado inadequadamente. Os dois zagueiros eram marcadores, mas os laterais tinham que atacar. Porém, quem me imitava não pedia aos seus defensores que atacassem e se limitavam a aplicar o catenaccio como um sistema estritamente defensivo”, defendeu-se Herrera quando Kuper insinuou que o futebol, por conta do catenaccio, se tornou mais chato.

Quase três décadas depois da publicação do livro, a impressão de Simon Kuper sobre o jogo praticado na Itália ainda é comum, inclusive no Brasil. Assim como também é comum a visão, entre quem acompanha com atenção e vive o futebol italiano, de que o “calcio” está longe de ser meramente defensivo.

Na temporada 2019/2020 das cinco principais ligas europeias, a Serie A só não teve melhor média de gols do que a Bundesliga: 3,04 dos italianos contra 3,21 dos alemães.

Na atual temporada, que iniciou em setembro, a média começou ainda mais alta: 3,5.

O Campeonato Italiano também só perde para o Alemão quando consideradas as últimas cinco temporadas. A média de gols por jogo nesse período é de 2,78 gols por partida na Itália, maior que os índices da Premier League (Inglaterra), de LaLiga (Espanha) e da Ligue 1 (França) -o da Alemanha é de 2,97.

Em 2016/2017, antes mesmo de Cristiano Ronaldo assinar com a Juventus (ITA), a Serie A alcançou 2,96 gols por jogo, a melhor marca entre as principais ligas europeias. Foi a única vez, nas últimas cinco temporadas, que algum outro campeonato que não a Bundesliga liderou o quesito.

Além da perda de protagonismo na elite, com o Inglês e o Espanhol assumindo a dianteira como ligas mais importantes, a imagem antipática com relação ao Italiano também pode estar ligada ao seu sumiço da TV no Brasil.

Depois de 36 anos de exibição contínua em canais da TV aberta e fechada, as duas últimas temporadas da Serie A só foram transmitidas em serviços de streaming. O DAZN, que adquiriu os direitos da competição para transmiti-la no país, não chegou nem a exibir a reta final do torneio neste ano após a pausa causada pela pandemia.

Para a temporada 2020/2021, o Grupo Bandeirantes (em TV aberta e fechada) e o SporTV adquiriram o pacote de transmissão da liga, encerrando o hiato e devolvendo o futebol italiano à televisão brasileira. Neste sábado, a Band mostra o clássico de Milão às 12h50, com narração de José Luiz Datena, que voltou às transmissões esportivas no canal.

“Geralmente as pessoas acham que a Serie A italiana não tem muitos gols, que não é ofensiva, muito pela imagem que a Itália construiu nas Copas do Mundo. Também passou muito pouco jogo ultimamente, o campeonato perdeu prestígio. É natural [essa impressão]”, diz Mairon Rodrigues, analista de desempenho e scout do Footure e comentarista do podcast Calciopizza, sobre futebol italiano.

O legado construído pela seleção ao longo dos Mundiais também explica em parte a imagem que grudou na memória coletiva com relação ao futebol do país.

Sandro Mazzola, craque da Inter de Helenio Herrera, não acredita até hoje como Ferruccio Valcareggi, treinador da Itália no vice-campeonato em 1970, não o escalava junto de Gianni Rivera, craque do Milan (ITA). Enquanto o técnico escolhia entre um meia e outro (Mazzola ganhou a preferência), Zagallo empilhou meio-campistas ofensivos e atacantes na equipe que se sagrou campeã.

Autor de “La Partita”, livro sobre o duelo entre Itália e Brasil na Copa do Mundo de 1982, Piero Trellini defende que o catenaccio morreu no Mundial da Espanha, ainda que o conservadorismo defensivo tenha reaparecido em 2006, no tetracampeonato mundial. “Foi emocionante vencer em Berlim [em 2006], mas não foi a mesma coisa que vencer em 1982”, afirma.

Independentemente dos estilos e da construção coletiva a partir da história das Copas, há uma ideia comum a vários treinadores italianos de diferentes escolas: a obsessão por codificar o jogo de futebol, abordagem pragmática para reduzir a influência do azar dentro de um sistema pensado e repensado em todas as suas variantes.

Se para alguns essa obsessão tática pode tornar o jogo mais chato, para outros é justamente o que faz da Serie A uma liga interessante. E com propostas ofensivas, como a da Atalanta (ITA), que fez 98 gols na temporada passada, 22 a mais que a campeã Juventus.

“Tem muitos jogadores bons, e o campeonato é riquíssimo taticamente. O Sassuolo é bom de ver, o Milan voltou a ser ofensivo, a Roma sempre tem soluções criativas do meio para frente. O Cagliari tem um jogo mais direto, para os atacantes resolverem rápido. São muitos times jogando de inúmeras formas”, completa Mairon.

O meia-atacante João Pedro, 28, teve uma grande temporada pelo Cagliari em 2019/2020. Autor de 18 gols na competição, foi o maior goleador brasileiro nas cinco principais ligas europeias.

Revelado pelo Atlético-MG, o jogador chegou à Itália em 2010, contratado pelo Palermo (ITA). Sem conseguir se firmar, passou por Portugal, Uruguai e voltou ao Brasil antes de chegar ao Cagliari, em 2014, para enfim se assentar no futebol italiano.

“O Campeonato Italiano é, com certeza, o mais tático de todos. Eu sofri na pele porque quando eu cheguei aqui, era muito novo. Eles mastigam o jogo para você usar a sua qualidade, dão três opções para cada jogada. Tem jogadores novos que vêm de outros campeonatos e sofrem muito, porque a parte tática é muito forte”, diz o brasileiro à reportagem.

“Não acho que seja um campeonato defensivo, mas é difícil de fazer gols”, completa João Pedro.

Mesmo com a dificuldade contra times bem treinados, Ciro Immobile encerrou a temporada com 36 gols, Cristiano Ronaldo com 31, e Romelu Lukaku com 23.

No início da década de 1990, o jornal “Il Messagero”, após uma rodada de muitos gols na Serie A, estampou a seguinte manchete em uma edição: “O catenaccio morreu”. Ser organizado defensivamente não significa só jogar atrás, como defendeu Helenio Herrera. É o que mostra a Itália dos artilheiros e dos gols aos montes.

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