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‘Casa de Antiguidades’ é ‘Bacurau’ ao contrário, um terror sem aventura

(FOLHAPRESS) “Casa de Antiguidades” começa tão estranho quanto este ano de pandemia, e tão estranho quanto um Festival de Cannes – onde o filme representou o Brasil – sem premiação e realizado só online. Mais precisamente, o filme de João Paulo Miranda Maria começa num escritório onde um homem fala em alemão e é escutado por um homem negro. As muitas palavras daquele que fala em alemão são reduzidas a uma frase sumária pela tradutora.

Pouco depois, existe uma reunião onde se encontram funcionários e diretores. Novamente a língua que se fala é estrangeira. Sabemos só que se trata de uma fábrica de laticínios de origem austríaca, instalada no Brasil. Sua bandeira traz os quatro estados do sul do país – três do Sul mesmo e mais São Paulo, que é da região Sudeste.

Em seguida, vemos o homem negro, interpretado pelo magnífico ator Antonio Pitanga, no que se presume ser sua casa, em companhia de seu cachorro. A casa é vista só do interior. Pouco depois ela reaparece, vista do exterior. E, enquanto o homem chega, dois ou três meninos apontam uma espingarda em sua direção.

Aos poucos, o caráter alegórico de “Casa” se manifesta. Os ataques à casa se repetem. No bar, os estrangeiros, dominantes, inclusive impõem a sua música. O homem tenta reagir introduzindo um som outro, mas parece inútil. Ele conversa com o fato de trabalharem numa empresa completamente estrangeira – língua, hábitos, funcionários –, embora esteja há um bom tempo instalada no Brasil).

A atmosfera se torna progressivamente mais tensa, feras atacam a casa do homem. Ele se defende com uma lança. Quando vê, não matou uma fera, mas um menino. Depois os meninos com carabinas reaparecem, matando o cachorro do homem.

Tudo mantém a estranheza, mesmo a dificuldade de classificação – a primeira impressão, a da alegoria, permanece, mas outras dúvidas vão surgindo. Seria um filme fantástico ou um filme de terror? Ora um, ora outro.

O que é certo – na alternância entre tempos fracos e tempos fortes, estes últimos são muito mais intrigantes, mais interessantes, também. Eles surgem quase sempre de um choque, enfatizado pelo som.

À medida que o filme se desenvolve, esses brancos branquíssimos vão se tornando cada vez mais nazistas na aparência e na agressividade contra o empregado negro (o único). Este exprime sua resistência como pode, buscando elementos da tradição cultural brasileira. O tema do racismo, enfatizado pelo diretor – que está morando na França e, aliás, faz aqui o seu primeiro filme longo – se torna mais evidente.

No entanto, não é esse o tema que parece dominar “Casa de Antiguidades”. Ele acompanha aqui a temática principal, a de um país ocupado (alegoricamente) sem maior resistência.

Nesse sentido – e não por acaso estamos aqui entre o Sul dos laticínios e o Centro-Oeste do gado –, podemos ver “Casa de Antiguidades” como um “Bacurau” com sinal trocado. Em ambos, existe uma ocupação do Brasil por estrangeiros. A diferença é que no Nordeste existe na comunidade atacada um forte sentimento de solidariedade; com ela vem a resposta à ocupação. Em a “Casa”, ao contrário, a solidariedade é nula, o isolamento da personagem de Pitanga é completo. Em “Bacurau” existe aventura. Em “Casa de Antiguidades”, certo terror. São duas representações opostas e talvez complementares do mesmo fenômeno. Miranda Maria é, em relação a Kleber Mendonça Filho, um talento ainda em evolução, o que nem de longe impede “Casa de Antiguidades” de ser um filme que vale a pena ser visto.

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