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Satyros fazem de Bolsonaro uma infestação de pombos na peça ‘Os Condenados’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “741, 742, 743”. Antena passa o dia todo na Praça das Condenadas, contando números em sequência. Lá está ela, absorta em sua compulsão, numa região tão lúgubre quanto o centro de São Paulo.

Em transe, o espírito de sua mãe aparece em cena, diluindo as fronteiras entre sonho e realidade. A mãe é caracterizada como na tela “Saturno Devorando um de Seus Filhos”, do pintor espanhol Francisco Goya, que serve de capa para o quarto seminário do psicanalista francês Jacques Lacan. Para ele, a figura materna é nada mais do que um bicho aterrador capaz de se alimentar dos desejos do próprio filho.

“Os Condenados”, peça inédita da Cia. Satyros, estreia neste sábado, propondo uma viagem surrealista, toda feita em “lacanês”, sobre a onda conservadora que aflorou nos últimos anos em diversos países, incluindo o Brasil. “Bolsonaro é um esquizoparanoide, porque ele está só nas funções primárias e binárias, não tem reflexão ou tonalidades”, diz o psicanalista Ivam Cabral, que assina a peça com Rodolfo García Vázquez.

Enquanto vaga pela praça, Antena, interpretada por Julia Bobrow, alimenta os pombos que se amontoam em busca de um punhado de milho. Eis que surge uma pomba -queer assim mesmo, no feminino, porque na peça os animais são não binários.

Rusga, vivida por André Lu, se mostra um animal sedutor e menos robótico do que os outros companheiros. Falando a língua humana, ela conquista a confiança de Antena, passando a morar em sua casa. Pouco a pouco, todos os outros bichos seguem a pomba tirânica, invadindo a casa da jovem.

“Poderia até ser outro animal, mas os pombos são uma representação bacana dos habitantes de São Paulo, que vivem em bandos, mas são muito solitários”, afirma Vázquez, numa ode a seus conterrâneos. Os autores buscam examinar os diferentes significados do animal, odiado por patricinhas do mundo inteiro. Afinal, elas o consideram nojento por transmitir a criptococose, doença que pode causar meningite.

Mas os pombos têm seu valor. Por isso, existe a pomba da paz e o pombo-correio, responsável por levar e trazer cartas. No masculino ou no feminino, eles alçam voos além da mente de Antena, conquistando lugares de destaque na cultura, esportes e política. Desse modo, a peça cria uma alegoria, para imitar tudo o que se passou no país desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, do PT.

“Os Condenados” sugere que o fenômeno bolsonarista nasceu de uma certa manipulação, tanto que Antena, espremida por pombos, assiste aos canais de notícia 24 horas por dia. Entre influenciadores e influenciados, a manipulação parece à companhia um tema contemporâneo.

“Não acho que Antena seja só vítima da Rusga, mas ela tem questões muito críticas, assim como todo mundo tem problemas psiquiátricos hoje em dia”, afirma Bobrow. Num telejornal, a presidente da Associação de Moradores do Leblon reclama da infestação dos bichos no bairro da zona sul do Rio de Janeiro.

Na peça, os animais são acometidos por uma doença que se espalha por todos em alta velocidade. Noutra cena, Rusga cacareja “Cucurrucucú Paloma”, canção do mexicano Tomás Mendez, ao som de uma sinfonia de tosses e espirros. Não é o único momento que lembra a pandemia.

Outro trauma, o de Antena, nasce a partir da morte da avó, que morreu asfixiada pela Covid-19. Desorientada, a jovem passa a ter na contagem de números o único refúgio para superar a depressão. A peça tem, com isso, passagens de terror e cenas que dão susto, com a aparição dos espíritos.

“Essa história nasceu com as experiências que fizemos em 16 montagens na pandemia”, lembra Vázquez. “O trauma possibilitou a gente trabalhar elementos de terror, que não estiveram tão presentes na trajetória do teatro brasileiro.”

Em “Os Condenados”, ainda há tempo para a aparição de um ex-pombo, que se mostra arrependido, como um ex-apoiador de Bolsonaro. No único momento em que estamos, de fato, na realidade, o ex-pombo faz um strip-tease e sai de cena em câmera lenta, para provocar os críticos que reclamam da longa duração das peças.

Enquanto isso, Antena, imersa num filme de terror, se confronta com o que vê no espelho, murmurando frases em “lacanês” -como “viver é desejar” ou “ódio também é afeto”. No final, ela descobre, pombas, que o inferno somos nós. “744, 745, 746.”

‘OS CONDENADOS’

Quando De 6/8 a 25/9 (sex. e sáb. às 21h, dom. às 19h)

Onde Espaço dos Satyros – Praça Franklin Roosevelt, 214, Consolação, São Paulo

Preço R$ 40 e R$ 20 (meia-entrada), na bilheteria do Espaço dos Satyros ou em www.sympla.com.br

Classificação 12 anos

Elenco Andre Lu, Anna Kuller, Beatriz Medina, Eduardo Chagas, Henrique Mello, Julia Bobrow, Luís Holiver e Marcia Dailyn

Direção Rodolfo García Vázquez

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