Exterior

Guerra na Tchetchênia, central para a formação da Rússia atual, faz 25 anos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na Rússia, país pródigo na glorificação do passado de enormes sacrifícios militares, uma das guerras centrais para a formação de sua história contemporânea completou 25 anos na semana passada sem fanfarra ou desfile.
Trata-se do primeiro conflito na Tchetchênia, que definiu a ascensão de Vladimir Putin da condição de um obscuro ex-espião da KGB para o papel de czar do século 21.
A guerra nos confins do Cáucaso tornou-se, no Ocidente, prova inequívoca da debacle militar daquelas que tinham sido as mais formidáveis Forças Armadas do mundo, ao lado das americanas, durante a Guerra Fria (1946/7-1991).
No establishment putinista, ninguém quer se lembrar dos eventos que se desenrolaram a partir dos primeiros bombardeios sobre Grozni, a capital tchetchena, no dia 11 de dezembro de 1994. “Tragédia e vergonha”, resume Konstantin Frolov, analista político em Moscou.
A União Soviética acabara três anos antes, e a Tchetchênia, assim como a vizinha Inguchétia, viviam em independência de fato de Moscou.
Preocupado em ficar no cargo e evitar a implosão final da Rússia, que perdera controle sobre 14 repúblicas soviéticas, o presidente Boris Ieltsin deixou o problema de lado.
No fim de 1994, acossado por doença cardíaca, alcoolismo e a perspectiva de concorrer à reeleição dois anos depois, Ielstin decidiu que seria uma boa ideia recuperar o controle sobre a região.
A Tchetchênia sempre foi problemática para os dominadores russos, que lá chegaram no século 18. Apenas em 1864 as tribos muçulmanas da área foram dobradas pelo poder central, e um episódio medonho durante a Segunda Guerra Mundial tratou de manter feridas bem abertas.
Entre 30% e 60% dos tchetchenos morreram devido à deportação forçada por Josef Stalin em 1944 –o ditador condenou coletivamente os separatistas por suposta colaboração com nazistas.
A guerra de Ieltsin foi um fracasso. O ataque inicial, em três frentes, opôs 38 mil soldados mal treinados a uma força resistente de 6.000 rebeldes animados pelo sentimento nacionalista, liderados por um ex-general da Força Aérea soviética chamado Djokar Dudaiev.
A tentativa de captura de Grozni no Ano-Novo de 1995 deixou a cidade arrasada, e cenas análogas às clássicas imagens de destruição na Segunda Guerra se repetiam.
Os russos tomaram Grozni em 1995, só para perdê-la no ano seguinte, numa humilhação sem igual desde a retirada do Afeganistão em 1989, após dez anos de ocupação.
As ruínas eram palco de atrocidades contra civis e militantes, e os tchetchenos não tratavam os russos exatamente pela Convenção de Genebra. A carnificina, ao fim, matou entre 6.000 e 12 mil soldados do Kremlin e até 100 mil tchetchenos, embora não haja dados precisos.
Em agosto de 1996, Moscou assinou a paz, que deixou o status local em suspenso.
Ielstin, reeleito, assumiu o fracasso enquanto seu país caía numa espiral de crise sem fim –o Produto Interno Bruto por paridade de poder de compra per capita caiu de US$ 8.000 em 1991 para um piso de US$ 5.000 em 1996; hoje é de US$ 27 mil.
Dudaiev havia sido morto em abril de 1996, antes da derrota russa, mas seus sucessores foram engolfados pelo radicalismo religioso e se viram no campo ao qual pertencia a incipiente Al Qaeda.
Transitando entre cargos importantes, como o de chefe do serviço secreto, o opaco Putin cresceu. Formou um núcleo de “siloviki”, termo russo para “durões”, uma turma egressa da antiga KGB.
O grupo estava disposto a reerguer a Rússia das cinzas do pós-comunismo, e a Tchetchênia seria simbolicamente o começo do processo.
Em 9 de agosto de 1999, tudo mudou. Enquanto Putin era entronizado por um frágil Ieltsin como primeiro-ministro, radicais tchetchenos invadiram o vizinho Daguestão e proclamaram um califado. Moscou tinha de reagir.
Pouco depois, 300 russos foram mortos em atentados atribuídos aos tchetchenos, que muitos dizem ter sido obra dos “siloviki”, deflagrando a guerra que subjugou a Tchetchênia em abril de 2000.
O premiê tornou-se presidente interino no Ano-Novo, com a renúncia de Ieltsin, e foi eleito de forma esmagadora em março. O resto é história.
Se o segundo conflito cristalizou o poder do início da era Putin, foi o primeiro que deitou os dormentes para que a locomotiva passasse. Entre 160 mil e 300 mil pessoas morreram nas duas guerras, num país que hoje abriga 1,4 milhão.
Para quem visita Grozni hoje, é difícil associar as ruas limpas e cheias de arranjos florais com os restos fumegantes dos anos 1990. Alguns fatores concorrem para a aparente calma, que escamoteia relatos de brutalidade do regime de Ramzan Kadirov.
Primeiro, o arranjo do pós-guerra. Putin entronizou o pai de Ramzan, Akhmat, como o fiador da estabilidade. Não deu certo: em 2004, ele foi morto em um atentado e virou figura onipresente em logradouros e grandes fotos, no melhor estilo Coreia do Norte.
Ramzan ocupou cargos de destaque até que, em 2007, chegou ao poder de vez.
Muçulmano sunita moderado, estabeleceu pontes entre o Kremlin e Estados do Golfo Pérsico, o que lhe garantiu a construção da “pequena Dubai” na capital: um conjunto de prédios absurdamente altos e espelhados, incluindo um hotel cinco-estrelas de 32 andares quase sempre vazio.
Em 2008, inaugurou a mesquita Akhmat Kadirov –claro. Com as elegantes linhas otomanas da Mesquita Azul de Istambul, é uma das maiores da Rússia.
Perseguições a adversários e a minorias são frequentes, mas, para Putin, a presença do regime é uma garantia contra a radicalização islâmica. É uma pressão ainda sob teste.
Fanático por futebol, Ramzan bancou a estadia da seleção egípcia do craque Mohamed Salah durante a fracassada campanha na Copa de 2018.
A reportagem acompanhou Ramzan e Salah se apresentarem na Arena Akhmat durante um treino do Egito. Além do esquema rígido de segurança, chamou a atenção o contingente de mutilados na torcida.
Numa Rússia em que os monumentos à guerra da Tchetchênia se resumem a puxadinhos com nomes de vítimas em memoriais já existentes, idosos e homens de meia-idade sem pernas e braços formavam uma pungente lembrança do passado que começou há um quarto de século.

To Top